Neoabolicionismo


I Simpósio Nacional do IDII
NEOABOLICIONISMO: resgate histórico ou retomada do Abolicionismo?

30 de Setembro / 1º de Outubro de 2005

Auditório do Memorial Vargas
Pç. Luís de Camões, s/nº - Glória
Rio de Janeiro



NEOABOLICIONISMO: Introduzindo e conceituando


Em 28 de Setembro de 1885, o Imperador do Brasil, DOM PEDRO II, sancionou a Lei de nº 3.270, pela qual a Assembléia Geral do Império decretara a libertação de todos os escravos superiores a 65 anos de idade, no exato dia em que se comemoravam os 14 anos da Lei do Ventre Livre (ou Lei Paranhos), celebrada a 28 de Setembro de 1871 e que concedia liberdade aos nascidos de ventre de mãe escrava, ainda que os dispusesse aos serviços do senhor de sua mãe.
A Lei dos Sexagenários, ou Lei Saraiva-Cotegipe, como também seria conhecida, era resultado de um projeto legislativo maior, de autoria do Conselheiro Manoel Pinto de Souza Dantas, cuja Presidência do Conselho de Ministros havia cindido em conseqüência do arrojo nas propostas abolicionistas.
A Lei dos Sexagenários foi prudentemente — na visão dos reacionários escravocratas — conduzida, garantindo a indenização aos senhores e o “retardo” na abolição incondicional do elemento servil.
Ainda assim, conforme explicitam historiadores em excelentes trabalhos recentemente vindos à lume, tal lei se insere no arrebatador processo de Abolição da Escravatura no Brasil, liderado por homens como JOAQUIM NABUCO, ANDRÉ REBOUÇAS, JOSÉ DO PATROCÍNIO, RUY BARBOSA e vários outros... além de contar com a presença máxima do sexo feminino: a própria herdeira do trono e futura Imperatriz, D. ISABEL DE BRAGANÇA.
A Abolição, enquanto vitória expressiva do maior movimento social que o Brasil do séc. XIX conheceu, coroou de êxito a luta incessante destes homens e dos milhões de negros brasileiros que no curso de três séculos haviam sido tristemente escravizados pelo sistema econômico que o Brasil e as Américas haviam optado por manter em suas terras após as guerras de Independência, contra as velhas metrópoles européias.
No Brasil, as instituições escravistas eram estranhas e contraditórias, pois o Estado possuía simultaneamente fortes alicerces ideológicos liberais... Em nome das reformas de nossas instituições e da superação dessas mazelas, começando pela ESCRAVIDÃO, arregimentaram-se os ABOLICIONISTAS, alguns monarquistas e outros, republicanos.
Ao ABOLICIONISMO, mantido no Brasil sob a égide de entidades como a Confederação Abolicionista e a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, e amplamente apoiado pelas tradicionais associações européias de combate ao trabalho escravo — sendo a Anti-Slavery Society, em Londres, a mais velha e principal delas, com a qual Nabuco sempre se alinhou, contando com irrestrito apoio — finalmente aderiram quase todos os BRASILEIROS. Única exceção: fazendeiros fluminenses, mineiros e paulistas.

A favor do ideal sublime da Abolição e da equiparação social entre brancos e negros firmaram-se publicamente os grandes homens acima apontados e a principal mulher daquele Brasil de final do Oitocentos: D. Isabel, a Princesa Imperial que atuaria como Regente em 13 de Maio de 1888, domingo áureo que assistiu à maior festa nacional até então conhecida.
Como conseqüência da Lei de nº. 3.353 — a Lei Áurea — os meses que se seguiram no Império do Brasil foram de crises políticas motivadas pelas chamadas questões militar e agrária.
Os destemidos políticos brasileiros de meia-idade e os mais jovens e equilibrados, iniciaram a sedimentação do III Reinado, para que a Política e a Economia do Brasil pós-abolição fossem diligentemente reformadas.
Como é bem sabido, uma sedição do Exército depôs o gabinete ministerial do Visconde de Ouro Preto, em 15 de novembro de 1889; conspiradores de plantão e traidores da Pátria souberam influenciar o chefe militar de maior prestígio da época e, com mentiras e torpezas, dele conseguiram à adesão ao que chamaram de “Proclamação da República”.
O velho e doente Imperador, ao ser informado, desceu de Petrópolis e resolveu aceitar a situação aberrante, em nome do não derramamento de sangue dos brasileiros. A Princesa Imperial ainda reuniu o Conselho de Estado mas a situação agravou-se e a Família Imperial foi declarada prisioneira domiciliar no Paço da Cidade. Na madrugada de 16 para 17 de novembro de 1889, os Príncipes do Brasil e seus mais próximos amigos e colaboradores foram exilados e banidos do território nacional, por ordem de um pseudo-Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil...
Na semana em que o BRASIL se recorda dos 120 anos da LEI DOS SEXAGENÁRIOS e da labuta de seus maiores para que as seculares injustiças de nossa sociedade tivessem termo com a libertação dos escravos e conseqüente assimilação deles na força de trabalho livre e assalariado, o Instituto Cultural D. Isabel I a Redentora visa promover seu I Simpósio Nacional, com a temática Neoabolicionismo: resgate histórico ou retomada do Abolicionismo?, onde pretende-se discutir os caminhos e descaminhos do Brasil após a Abolição, a situação dos negros no Brasil da transição do séc. XIX para o XX, durante o XX e agora, nos princípios do XXI.
Anteontem, a Deputada Jurema Batista, da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, teve a feliz iniciativa de, como em todos os outros 28 DE SETEMBRO, realizar sessão solene comemorativa das datas abolicionistas no Plenário do Poder Legislativo fluminense, contando com a presença de grande número de personalidades do universo político, científico e artístico em que alguns negros brasileiros se sobressaem.
Este “universo”, entretanto, não é do tamanho que desejaríamos fosse. É evidente que os NEGROS, no Brasil, não compõem a maioria entre os representantes das classes sociais mais elevadas, seja econômica ou educacionalmente falando.
Aqui aproveito o ensejo apenas para abrir o parêntesis da terminologia, pois NEGRO não é a forma tradicional da designação do chamado “homem de cor”, pois entre nós usou-se sempre, e ainda se usa, o termo “preto” ou “preta” para tal designação, enfim, alertando para que não venhamos a inferiorizar a expressão PRETO e PRETA, como fizeram variados movimentos negros pelo Brasil afora. Existe candura e bem-querença em algumas das velhas expressões designativas — é o caso de “pretinho” e “pretinha”, não só usados na Bahia como em inúmeros outros recantos nacionais, aliás até por não-pretos... — e isso não pode ser esquecido em nome da ideologia afirmativa, ainda que recorrentemente caiba aos movimentos negros realçarem qualquer que seja o mínimo tom de racismo, leve que seja, daquelas que destoem do modo lídimo como devem ser empregadas e mesmo entoadas...
Pois bem, retornando à temática da exclusão social dos Negros Brasileiros — ou Pretos Brasileiros — dos meios de acesso à educação básica e, mormente, ao ensino superior, é justo afirmar que se a ABOLIÇÃO lhes concedeu a CIDADANIA jurídica, ela não correspondeu à sua equalização social com os brancos brasileiros. O porquê desta riquíssima série de informações e narrativas que possa se constituir a historicização dos processos excludentes dos negros brasileiros da vida nacional não é certamente único e, menos ainda, restrito.
Imaginar, por exemplo, que, como se diz comumente pelas ruas, “a Princesa Isabel acabou com a escravidão, mas deixou ao relento milhares de ex-escravos e seus descendentes”... deixando de lado o conhecimento de que a reação ao processo abolicionista foi violenta por parte das classes dirigentes do Brasil de fins do XIX e que as elites rurais apoiaram sordidamente o movimento golpista que conduziu ao poder parte pequena e despreparada do Exército Imperial, numa sucessão de atos de alta traição, enfim, menosprezar tais informações é, conforme freqüentemente esboçamos nas oportunidades dadas, ferir de morte a História do Brasil.
Colocamos no Texto de Lançamento do IDII: desconhecer os projetos e as aspirações de nossas grandes mulheres e nossos grandes homens para aquilo que teria sido o III Reinado é não poder operar com os conceitos de reformas sociais profundas pelas quais o IMPÉRIO DO BRASIL não poderia passar incólume, nos alvoreceres do século XX. Contudo, essas grandes mulheres — D. Isabel a maior delas, não resta dúvidas — e esses grandes homens... para onde foram? O que ocorreu com eles? Quais foram os prosseguimentos de suas trajetórias? Em que terras, reais ou imaginárias, aportaram ANDRÉ REBOUÇAS, JOAQUIM NABUCO, ALFREDO TAUNAY, JOSÉ DO PATROCÍNIO e os mais jovens AFFONSO CELSO, RODOLFO DANTAS e outros? Pode-se perfeitamente indicar que na TERRA DO NUNCA, em trocadilho que talvez pareça infame a alguns.
Mas é certo que eles não puderam realizar a grande obra, o grande BRASIL, que iriam nos legar.
Em lugar do III Reinado, em lugar da Chefia do Estado brasileiro sendo ocupada por uma mulher, na passagem do XIX para o XX, nós tivemos o que cito abaixo, do Texto de Lançamento[1]:

Em seu lugar, tivemos nós a Primeira República — mais conhecida como República Velha —, e todos os processos a ela inerentes: o aumento do controle do Estado sobre a vida civil; a corrupção dos homens de governo; o vendilhismo e servilismo ao capital e domínio estrangeiros, sobretudo norte-americano; os genocídios de Canudos (1893-97) e do Contestado (1912-16), onde, pela primeira vez na História do Brasil, o governo dizimou milhares de campesinos miseráveis, exclusivamente por não aceitarem uma nova ideologia do poder[2]; o afastamento da intelectualidade da vida política[3]; a socialização das perdas[4]; o coronelismo como prática efetiva de poder local, subvencionado pelo poder central; a reordenação das grandes cidades, sobretudo o Rio de Janeiro, segundo parâmetros progressistas de civilização, marcadamente eivados de racismo e outros segregacionismos, etc.

A República Velha que, acrescente-se tendo em vista duas das palestras que ocorrerão amanhã, sobre personagens dos anos 1910, 20 e 30 (LIMA BARRETO e D. LUIZ), soube conduzir-se “acima das massas populares desprezíveis”, nas palavras de um de seus presidentes, de maneira exemplarmente oligárquica, plutocrática e absolutamente anti-meritocrática. Nela, tinham vez, voz e até destaque personagens que no II Reinado eram amplamente rechaçados e que Nicolau Sevcenko elenca tão bem no verdadeiro manual de história da literatura e da inteligência brasileira que é seu clássico LITERATURA COMO MISSÃO[5]. Os escroques, os golpistas, os arrivistas e aventureiros, todos eles imbuídos de péssimas intenções no que tange ao governo e suas “facilidades”: assim o disseram os contemporâneos RUY BARBOSA, LIMA BARRETO e MONTEIRO LOBATO, apenas citando alguns nomes dos que podiam falar no próprio país e o exilado D. LUIZ, filho e herdeiro da Imperatriz banida.
Em resumo, colocando em tons bem pragmáticos e programáticos e tentando não cair na tentação do historiador de muito divagar filosoficamente pelas demais ciências sociais às quais se irmana, poder-se-ia dizer que enquanto persistir entre nós a ignorância — no sentido exclusivo de falta de conhecimento — da História do Brasil das décadas de 1880, 1890, 1900, 1910, 1920 e 1930 é certo que continuaremos rodando em círculos no que se refere a tentar esclarecer questões fulcrais sobre nosso desenvolvimento nacional, tanto endógena quanto exogenamente. Principalmente esclarecer porque, nestes 115 anos que se sucederam após a gloriosa LEI ÁUREA, manteve-se no Brasil uma espécie de “apartheid” velado e escamoteado, onde os negros continuaram sendo vistos como cidadãos de segunda classe, quando não serviçais mesmo, sendo tratados com desprezo e marginalização numa sociedade que, além de híbrida e mestiça, se diz republicana e igualitária desde 1889...
Como dissemos no Texto de Lançamento, em 2001: “Dentro dessas perspectivas, torna-se imperativo uma busca concreta de nossas raízes históricas, tendo como foco principal o período compreendido pela República Velha. É ali, segundo nossa opinião, que se encontra grande parte das explicações de muitas das mazelas do Brasil atual.”
Dito isso, passemos às apreciações do que seja mais especificamente a introdução e conceituação do NEOABOLICIONISMO.
Antes, porém, recorramos a um dos muitos LEÕES DO NORTE, o mestre Joaquim Nabuco, num resumo do que seria o ABOLICIONISMO nos idos de 1883, quando conseguiu publicar com grande esforço, no seu auto-exílio de Londres, o livro de mesmo título, que é considerado obra de víeis político extremado, mas que tem, segundo Evaldo Cabral de Mello e outros, evidentes traços de texto sociológico e histórico acurado e basal.
Nela, Nabuco explica que ABOLICIONISMO é um conjunto de idéias e ideais suprapartidários, visando exclusivamente a abolição incondicional do chamado elemento servil do Império do Brasil e a subseqüente implementação de reformas sociais de cunho mormente fundiário e integralizador da vida nacional.
Corria o ano de 1883 e a perspectiva de abolição imediata distava muito para Nabuco, pois a vitória expressiva dos escravocratas nas eleições gerais que o impediram de renovar mandato na Câmara dos Deputados o haviam desapontado enormemente.
Em O ABOLICIONISMO, Nabuco tem a oportunidade esplêndida de “radiografar o Brasil”, na expressão de Leonardo Dantas Silva, ao examinar de longe as agruras escravistas quase que inerentes à nacionalidade brasileira que se encontra, por essa época, já bastante moldada.
Como é bem sabido, ele diz ser a escravidão a marca nacional brasileira, para o bem ou para o mal. Que bem (?) — perguntariam os mais atentos. O bem de um difuso senso caritativo do povo brasileiro em geral que, na dor do escravo, soube reconhecer, aqui e ali, a dor de um irmão, a dor de um semelhante. Contudo, alinhando escravidão e barbárie, ele jamais deixará de creditar-lhe o maior entrave ao desenvolvimento saudável de nossa sociedade.
Não poupará no opúsculo críticas severas ao comportamento de muitos dos representantes do clero brasileiro, da Colônia ao Império. Nesse ínterim, ele alterará suas convicções mais tarde, passados mais de dez anos da Abolição, quando pela chamada por ele mesmo “conversão” ao catolicismo, escreverá MINHA FÉ — ou FOI VOLUE — e não mais repetirá que “entre nós, o movimento abolicionista nada deve infelizmente à igreja do Estado; pelo contrário, a posse de homens e mulheres pelos conventos e por todo o clero secular desmoralizou inteiramente o sentimento religioso de senhores e escravos. (...) A deserção pelo nosso Clero do posto que o Evangelho lhe marcou foi a mais vergonhosa possível: ninguém o viu tomar a parte dos escravos, fazer uso da religião para suavizar-lhes o cativeiro, e para dizer a verdade moral aos senhores”...
Na verdade, os contatos pessoais que irá travar com o Papa Leão XIII em Roma e a adesão formal de inúmeros bispos e padres ao movimento que ele liderará no Brasil entre 1884 e 1888 o fará revisar suas críticas e saber compreender, um pouco mais tarde, o diferencial intrínseco entre Igreja (Corpo Místico de Cristo) e homens da igreja, ou seja, representantes da hierarquia eclesial que, se abstrairmos sua humanidade, pouco sobra de riqueza simbólica até de seu ofício, além de desmerecer o aspecto potencialmente virtuoso que cada clérigo tem em si de buscar uma heroicidade que só se reconhece publicamente em grandes processos de demanda popular e, assim mesmo, muito tempo após sua morte.
O jurista Nabuco, tal qual Ruy Barbosa, defenderá a imensa ilegalidade — e não somente, reparem bem, ilegitimidade — da escravidão, enquanto realidade social eminentemente contrária às leis do Império de 1831 e 1850, dando conta da supressão do tráfico externo e interno de africanos no Brasil.
Ressaltará, ainda, a particularidade nacional brasileira de não termos criado uma ambiência de ódios raciais como em outras terras colonizadas pelos europeus. E embora para ele, acabar com a escravidão não bastasse, sendo necessário destruir a obra da escravidão, ele considerava que a LEI que garantisse o término jurídico de um estatuto colonial torpe, imoral, asqueroso mesmo, já seria o primeiro grande passo de nosso RESGATE, ou como diremos adiante, nossa REDENÇÃO NACIONAL.
Maria Alice Rezende de Carvalho, em sua fantástica obra O QUINTO SÉCULO, contextualiza em uma narrativa digna do atributo de genial, que o pensamento social e abolicionista nabuquiano se insere nos quadros intelectuais do liberalismo monárquico inglês e que, no intercâmbio, mescla e profunda amizade que têm entre si JOAQUIM NABUCO, ANDRÉ REBOUÇAS e ALFREDO TAUNAY, essa tríade é responsável pelo que de melhor se produziu na intelligentsia brasileira de final do Oitocentos.
Com maestria, ela dá conta de esclarecer ao leitor sobre as enormemente díspares  características individuais dos três, sem deixar de apontar para sua grande convergência: a abolição e as reformas.
Tais reformas, racionais e radicais reformas, o Brasil não as conheceu. O que conhecemos, a partir de 1889, foram sucessões de governos de LANDLORDS — expressão cara tanto a Nabuco quanto a Rebouças — extremamente autoritários, reacionários e, o pior de tudo, racistas.
Se a década de 1930 em diante passou a representar na História pátria rupturas aqui e  acolá com a velha ordem excludente e estapafúrdia da República Velha, tal não se deu sem o esforço de vários intelectuais, apoiadores ou não do novo regime de Vargas, quando “descobriram” — ou “redescobriram”, ou “reinventaram”, depende da ótica do historiador — o BRASIL.
Diga-se a título de justiça que o maior continuador da obra de NABUCO, nesta época, será seu conterrâneo Gilberto Freyre, fundador de toda uma ciência social brasileira própria.
Contudo, retornando ao ABOLICIONISMO e tentando aqui entabular o exercício de conceituar o NEOABOLICIONISMO, fica relativamente fácil depreender que nosso movimento — digo nosso, do Instituto D. Isabel, mas evidentemente NOSSO, num sentido bem mais amplo, lato e verdadeiramente nacional, como o são, evidentemente, todos os pré-vestibulares e demais associações voltadas ao ensino dos outrora pobres e marginalizados —, nosso movimento traz consigo a tônica arraigada e viçosa de um engajado RESGATE HISTÓRICO-CULTURAL... mas não é só e sobremaneira dela composto.
Assim colocamos na monografia sobre a memória da Redentora[6], olvidada pelo silêncio historiográfico que a República brasileira lhe impôs:

Tzvetan Todorov, famoso intelectual búlgaro estudioso da alteridade, e que vivenciou os aberrantes processos de stalinização em seu país natal, dá-nos interessantes insights sobre as utilizações variadas que se faz do passado. Elas motivam abertamente ações políticas, mas também, de maneira menos flagrante, aquelas histórias aparentemente científicas à toda prova. A despeito do historiador ter de buscar avidamente a verdade, isto não significaria verdade única, como bem sabemos e, mais além, não significaria que seu trabalho não estivesse repleto de ensejos posturais políticos. “A ciência, é claro, não se confunde com a política; ainda assim, a própria ciência humana tem finalidades políticas, e estas podem ser boas ou más.”[7]
Também Michael Pollak, ao se referir à memória oficial contrapondo-se às chamadas por ele memórias subterrâneas, diz que:

Embora na maioria das vezes, esteja ligada a fenômenos de dominação, a clivagem entre memória oficial e dominante e memórias subterrâneas, assim como a significação do silêncio sobre o passado, não remete forçosamente à oposição entre Estado dominador e sociedade civil. Encontramos com mais freqüência esse problema nas relações entre grupos minoritários e sociedade englobante.[8]

Pouco antes, Pollak havia dito algo deveras interessante sobre aquilo que se costuma chamar, um pouco vagamente, é certo, retorno do recalcado, numa alusão às teorias psicológicas freudianas[9]. Se é procedente que a força com que retornam as verdades sobre um passado escondido ou propositalmente obscurecido sejam eminentemente maiores das que o conseguiram obnubilar, então, em nosso caso, o III Reinado que não veio e o exílio de D. Isabel voltarão como uma das mais poderosas seivas histórico-culturais do Brasil do século XXI...

E, portanto, caríssimos: NEOABOLICIONISMO é sim resgate histórico do ABOLICIONISMO, mas não paire dúvidas de que também seja sua retomada.
Afinal, num BRASIL cada vez mais assolado pela ausência de lideranças políticas comprometidas com as causas populares genuínas e ancestrais, cabe-nos indicar a exemplaridade nabuquiana, rebouciana e taunaysiana a todo momento. Cabe-nos rememorá-los, bem como em nada contrapor-se e até endossar o culto cívico-religioso de D. Isabel.
Pari passu, evidentemente, neoabolir significará extirpar de nós mesmos qualquer resquício do Brasil escravocrata de antanho: brancos e pretos brasileiros são chamados, mais do que nunca, a unirem-se por uma NAÇÃO finalmente remida e salva de suas seculares injustiças sociais.
Todos, juntos e irmanados, somos chamados à missão maior de cada cidadão brasileiro: defender, trabalhar, atuar, motivar e engrandecer a EDUCAÇÃO, maior lacuna que os homens de governo novecentistas nos legaram.
Somente com EDUCAÇÃO, EDUCAÇÃO e EDUCAÇÃO nossa maior mácula histórica e constitutiva será plenamente superada. Finalmente, chegará o dia preconizado por José Bonifácio, Paranhos, Luís Gama, Rebouças, Nabuco, Patrocínio, Dantas, Dom Obá, Rui Barbosa, Saldanha da Gama, Antonio Conselheiro, Lima Barreto, João do Rio, D. Luiz, além de tantos e tantos anônimos, quando o Brasil negro-mulato-mestiço, verdadeiramente redimido, voltará a orgulhar-se dele próprio, fazendo do ato de D. Isabel uma cotidiana FÉ DE OFÍCIO, tomando emprestada a expressão que seu exilado pai usou para designar seu testamento político.
Enfim, e por outras palavras, quando finalmente expurgarmos de nossa NAÇÃO os óbices sociais que pesam sobre milhões e milhões de brasileiros excluídos, teremos concluído nossa missão e o futuro nos reservará a gratidão de nossos descendentes.
Estivesse aqui entre nós um profissional de psicologia e eu não sei se há, e diria, muito provavelmente, que NEOABOLIR nada mais é senão PSICANALIZAR a Nação. E é exatamente isso!
Revisitar o passado histórico em busca de resultados para nossas pesquisas de História e Ciências Sociais e Políticas, mas, certamente também, praticar o exercício constante de analisar nossas posturas pessoais perante o entorno de problemáticas que se nos fazem aparentes.
Dito isto, conclamo a todos os presentes aqui, para que possam conclamar a seus familiares, parentes, amigos e conhecidos: MÃOS À OBRA!

Bruno de Cerqueira


Referências bibliográficas

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[1] Cf. CERQUEIRA, Bruno da S. A. de: Rio de Janeiro, 13 de Maio de 2001 in Texto de Lançamento do IDII, Rio de Janeiro, 2001.
[2] Os movimentos messiânicos de Canudos e do Contestado foram chamados de monarquistas pelas autoridades da República, justamente numa classificação de desordeiros contra a nova ordem republicana. O monarquismo, no sentido intelectualizado do termo, certamente não era a tônica dos sertanejos revoltados com a nova ordem, ainda que o anti-republicanismo o fosse. Sentimentos sebastianistas, pietistas e nostálgicos, contudo, faziam deles partidários da volta da Monarquia e do princípio de sacralidade do poder, vale dizer, da origem divina do poder.
[3] Nesse sentido, a obra Literatura como missão (Ed. Brasiliense, São Paulo, 1983), de Nicolau Sevcenko, é quase um clássico no estudo do afastamento, às vezes auto-provocado, às vezes incitado pelo establishment republicano, dos intelectuais da vida pública brasileira. Mormente Euclides da Cunha e Lima Barreto são aí analisados.
[4] Conceito criado pelo historiador Celso Furtado para designar a forma como o Governo da República arcava com os prejuízos das oligarquias cafeeiras, quando as oscilações cambiais provocavam queda nos preços do café nos mercados externos.
[5] Cf. SEVCENKO, Nicolau: Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República, Ed. Brasiliense, São Paulo, 1983.
[6] Cf. CERQUEIRA, Bruno da S. A. de: A memória da Redentora: o olhar de D. Isabel sobre o golpe de 15 de novembro de 1889 e suas conseqüências (1888-1921), monografia de graduação em HIS (PUC-Rio), 2003.
[7] Cf. TODOROV, Tzvetan: A Conservação do Passado, in Memória do mal, tentação do bem, Edições ASA, Lisboa, 2003 (p. 150).
[8] Cf. POLLAK, Michael: Memória, esquecimento, silêncio, in Estudos Históricos (ed. 1989/3), CPDOC / FGV, Rio de Janeiro, 1989 (p. 5).
[9] Quando diz que “O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas.” Idem, p. 5.