sábado, 1 de setembro de 2001

Minha Formação: apontamentos sobre Joaquim Nabuco

MINHA FORMAÇÃO:
APONTAMENTOS SOBRE JOAQUIM NABUCO,
O PATRONO DA RAÇA NEGRA


• Trabalho do curso de Leituras Brasileiras,
ministrado pelo Exmo. Sr. Prof. Dr. Ricardo Salles. na PUC-Rio •

Bruno da Silva de Cerqueira - setembro/2001

INTRODUÇÃO
Apresentar trabalho que se relacione ao estudo de parte que seja da obra nabuquiana perante um especialista no assunto é, deve-se dizer de início, algo que atemoriza.

Nosso Professor, Ricardo Salles, é doutorando, se não me engano, com a defesa de uma tese acerca de Joaquim Nabuco.

Desta forma, opto aqui por nada mais fazer que apresentar - ao especialista e aos meus caros colegas - um Nabuco que de tão semelhante, me é quase familiar.

Se acatarmos a douta sugestão de Maria Alice Rezende de Carvalho em sua análise da obra Minha Formação, publicada recentemente em Introdução ao Brasil: Um banquete no trópico, não será difícil a percepção de minha familiaridade com a temática discorrida por Nabuco com tanta excelência em sua autobiografia. Diz ela:
Minha formação começaria a circular em 1900, provocando um certo debate nos meios cultos da capital federal. Elogiada como obra literária, a coletânea autobiográfica de Nabuco não repetiria, de imediato, o sucesso de Um estadista do Império, livro que ostentava o rigor da pesquisa histórica e que havia conferido enorme prestigio intelectual ao seu autor. Comparado a ele, Minha formação estava longe de exibir o mesmo acabamento, demonstrando ser uma reunião de artigos autobiográficos já publicados pela imprensa monarquista, passagens do diário íntimo de Nabuco, longos trechos do Foi voulue e um capitulo final, intitulado "Os últimos 10 anos (1889-1899)", redigido ao sabor da conjuntura. Ademais, para os padrões da época, a decisão de Nabuco de se expor ao escrutinio público parecia atentar contra o decoro. Ele próprio se preocupava com a recepção de seus contemporâneos á obra, considerando que aquela iniciativa talvez pudesse suscitar uma impressão "[...] de volubilidade, de flutuação, de diletantismo [...]". O fato é que, ao longo do tempo, a autobiografia de Nabuco passaria a figurar, justamente, como uma das grandes realizações literárias brasileiras, conferindo ampla projeção a um gênero que ainda não havia sido muito praticado entre nós.
O que, porém, poucos atentaram - e que, mesmo hoje, não costuma ser enfatizado - é que o livro, a despeito de suas qualidades literárias, não consiste exatamente em uma obra ditada pela subjetividade de Nabuco, sendo, antes, uma peça de persuasão política.
Com Minha formação, o autor pretendia, mais do que falar de si, da sua existência intima ou privada, como costuma ocorrer nas autobiografias, evocar uma certa tradição brasileira, revelada tanto na conduta das elites políticas imperiais, da qual se considerava herdeiro, quanto na índole conservadora da história nacional, que indispunha o Brasil ás rupturas revolucionárias.
Nesse sentido, o programa político implícito em Minha formação consiste na defesa do tema da continuidade, no elogio à tradição reformista do Império, em visível oposição à revolução republicana, cuja perspectiva era a do rompimento com o nosso passado, visando a invenção de um outro Brasil. Segundo Nabuco, a República brasileira inaugurara, de fato, um novo ambiente moral e intelectual, cujos princípios eram abstratos, derivados do racionalismo jacobino, e não da experiência nacional, tal como a conceberam as elites imperiais.
Daí que, como representantes de um ideário filosófico, mais do que herdeiros da civilização arquitetada pelos construtores do Brasil, as lideranças políticas da República mostravam-se pouco afetas à exemplaridade, conduzindo o País a um total esquecimento de si, da sua trajetória de realizações.
Assim, ao retratar-se como um simples exemplar da extensa cadeia de personagens imbricados no processo de formação de uma consciência única, nacional, Nabuco pretendia fazer da sua história pessoal uma via de acesso à história do Brasil. E, nesse caso, Minha formação pode ser lido como a sugestão política do reencontro do País consigo mesmo, tendo em Nabuco um mediador que, ao falar de si, almeja religar a nação aos seus antigos ideais, e ao falar da nação, espera corrigir o personalismo de que eram acometidos os novos líderes políticos, subordinando-os à exemplaridade das gerações que os precederam para a realização de um destino nacional esboçado sob o Império.
Com Minha formação, tem-se, portanto, o mais contundente relato do sentimento de crise que acometeu as elites imperiais no contexto republicano e a mais vigorosa defesa de um futuro pautado pela tradição brasileira. Um relato político apresentado com a elegância literária de que somente Nabuco seria capaz, pois, nele, a literatura e a política caminhavam juntas, ou melhor, eram tidas como partes indissociáveis da imaginação estética aplicada à produção de uma grande obra, fosse ela o texto, a sua vida pública ou a nação.

A julgar pelo que diz a Profª. Maria Alice, então, falar de Nabuco será sempre, para mim, falar de mim mesmo. Ler Nabuco significará em meu espírito investigador de profissional da historicidade, ser Nabuco.

Pois se ele faz de sua autobiografia uma oportunidade única de defesa de um ideal, de profissão de uma fé, de proposição de uma nacionalidade em que o respeito pela Tradição é conditio sine qua non, não há como fugir. Minha identificação com sua obra, com seus gostos, com suas aptidões, com sua vocação, com sua natureza mesmo, será inevitável.

Se ler Nabuco e segui-lo em suas perspectivas intelectuais significa ser cristão e monárquico e, ainda mais, árduo defensor do catolicismo e do monarquismo, então, novamente confirmo, com toda honestidade e franqueza d´alma possíveis: ler Nabuco é ser Nabuco.

Assim, é nesta condição, a de um apaixonado pelo autor e pela obra nabuquiana, que minhas análises serão parcamente contribuintes a mais uma apreciação de Joaquim Nabuco em Minha Formação. De antemão realizo aqui e agora o devido pedido de desculpas, sobretudo ao Prof. Ricardo Salles, a quem minhas observações poderão por vezes se assemelhar a postulados de profunda imaturidade intelectual.
1. JOAQUIM NABUCO:
RELAÇÕES ENTRE SUAS ORIGENS E SEU PENSAMENTO
Quem é Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo?

O filho do Senador do Império e Conselheiro de Estado José Thomaz Nabuco de Araújo e da Senhora, nascida Anna Benigna de Sá Paes Barreto, mas sobretudo o afilhado de Dª. Anna Rosa Falcão de Carvalho, nascera em Recife, aos 19 de agosto de 1849.

Se como afirmam tanto Gilberto Freyre quanto Luiz Carneiro Leão em suas apreciações proustianas sobre Nabuco, o grande pernambucano considerava-se, ele-mesmo, como a qualquer outro ser humano, fruto de traços e marcas que se nos cingem na infância, como captar o espírito nabuquiano sem lhe conhecer as origens, e o que vai mais longe, atribuir-lhes real significado?

Vemos a Nabuco, antes de tudo, como um aristocrata. Explica-se. Filho de um senador e conselheiro imperial - ambas funções vitalícias, ainda que não hereditárias, em nossa Monarquia -, membro da aristocracia rural pernambucana, entroncado por laços de parentesco e afinidade à toda a elite nordestina; criado e educado por uma típica sinhá brasileira (senhora de engenho, de terras e de escravos), um tanto afastado de sua mãe - ela também, proveniente da Nobreza de Portugal -, enfim a este Nabuco não pode caber outra qualificação senão a de ARISTOCRATA.

Deixemos que ele mesmo fale um pouco dessas suas origens quando descreve sua ascensão ao cenário político do legislativo imperial:
O fato que me lançou na política foi a morte de meu pai, em março de 1878, ano em que serei eleito pela primeira vez deputado... Ele morreu a tempo ainda de assegurar a minha eleição que tinha ficado resolvida entre ele e o barão de Vila Bela, chefe político de Pernambuco. Sousa Carvalho, que muito impugnou, depois de morto meu pai, a minha candidatura, foi a Vila Bela e, referindo-se àquela morte, disse-lhe: Sublata causa, toilitur effectus. Domingos de Sousa Leão, porém, tinha a religião da amizade e da lealdade, e a morte de Nabuco, em vez de delir o seu compromisso, tornara-o de honra... Meu desejo íntimo era então continuar na diplomacia... Minha mãe, porém, conservava a ambição de meu pai, de me ver entrar na política, para um dia substitui-lo, sentar-me na sua cadeira de senador, como ele se sentara na de meu avô, que já não fora o primeiro senador Nabuco, porque encontrara no Senado seu tio José Joaquim Nabuco de Araújo, o primeiro barão de Itapoã. Eu representaria assim no parlamento a quarta geração da mesma família, o que não aconteceu, suponho, a nenhum outro. Com Martim Francisco Júnior, filho, neto, e bisneto de parlamentares, as gerações políticas foram três, por serem irmãos o avô e o bisavô, Martim Francisco e José Bonifácio.
Será que ao definir Nabuco como aristocrata, deve-se também aludir a uma noção, ínfima que seja, do que represente para nós o termo? Valeria à pena? Penso que sim, pois é precisamente neste pormenor que nos apegamos para a defesa da obra e da memória nabuquiana.
Joaquim Nabuco é aristocrata somente porque nasceu numa família senhorial brasileira? Não. Se tomarmos aristocracia em seu sentido etimológico, advindo da Grécia Antiga, nos lembraremos das lições aristotélicas e polibianas de que esta é a forma de governo em que os melhores comandam.
Nabuco é aristocrata porque seu modo de ser era aristocrático, sua pensée era aristocrática. E em que consiste isso?

Não somente bem-nascido, bem cuidado, bem educado, bem formado, enfim, Joaquim Nabuco é em Minha Formação, tanto quanto em O Abolicionismo ou Um Estadista do Império, um verdadeiro, completo e prestimoso ARISTOCRATA.

As fases de sua vida e evolução intelectual podem até variar, mas as suas origens e aquilo em que elas lhe marcaram constituiriam para sempre o Nabuco que, fosse enquanto ser individual ou coletivo, religioso ou político, social ou psíquico, era um ARISTOCRATA.

Se uma visão profundamente afetada por um determinado igualitarismo simplista perder de vista a condição aristocrática de Nabuco para lhe atribuir um caráter destoante da classe da qual provinha, errará barbaramente. Nabuco era aristocrata, independentemente de sua classe - ou de muitos indivíduos dentro dela - ter se tornado obsoleta e retrógrada, leia-se oligarquizada.

De novo, recordemos Aristóteles e Políbio quando dizem ser a oligarquia a corrupção da aristocracia e compreendamos exatamente o que foi a fase final do II Reinado brasileiro, a Abolição da Escravatura e o advento da mal-fadada República.

Joaquim Nabuco, mas também seu pai antes dele, justiça se faça, eram aristocratas porque homens sérios, devotados ao Bem Comum, nobres pouco ciosos de sua nobreza. Aristocratas sem aristocracismo, i.e., o orgulho aristocrático; melhores, sim, justamente porque não se viam como melhores. Superiores justamente porque se achavam iguais, em essência, a qualquer outro ser humano...
2. JOAQUIM NABUCO, ANDRÉ REBOUÇAS E DONA ISABEL
RELAÇÕES POUCO VISITADAS NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

Nabuco não se via, muito provavelmente - e seria o absurdo do anacronismo cobrar-lhe outra postura - como igual em contingência a nenhum de seus escravos, a nenhum dos negros de sua época; época racista, evolucionista, positivista. Talvez se desesperasse intimamente em sua Psiché quando cogitasse superioridade em relação a um dos grandes amigos da vida, André Rebouças.

Costumo colocar o mesmo em relação a uma outra grande fonte de admiração de Nabuco, D. Isabel a Redentora. Não importa enxergar o óbvio: que num Brasil concomitantemente liberal e escravocrata, as contradições raiavam à loucura.

O que vale é, em minha opinião, investigar precisamente no seio dessas contradições, as figuras de realce.

Dona Isabel, a filha do Imperador Dom Pedro II, a loura Princesa Imperial do Brasil casada com o Conde d´Eu (Príncipe Gaston de Orleans), herdeira de uma tradição monárquica de mais de mil anos, no Velho e no Novo Continentes, a primeira - e única em sua época - mulher Chefe de Estado das Américas, era, da mesma forma que Joaquim Nabuco e André Rebouças, uma das mais expressivas figuras da contradição brasileira de fins do século XIX.

O Brasil velho e ultrapassado, herdeiro daquilo que qualquer colonização acarreta de problemático, via-se em fins do XIX, inerte em seu centralismo administrativo, gigante em seus latifúndios, gerador de sua própria improdutividade e, o pior para aquelas três figuras máximas: mantenedor de todo esse estado de coisas porque mantenedor da escravidão.

O Brasil, logo o Brasil, que por outro lado, era imperial sem imperialismo, cristão sem fanatismo e com sincretismo, monárquico sem autocracismo, justo a pátria amada de Isabel, Nabuco e Rebouças, maculada indelevelmente pela desumanidade da escravidão. Todas as esperanças desses mui dignos representantes de uma geração de brasileiros recaíam, inelutavelmente no futuro mais próximo daquela época, ou seja, o séc. XX.

A superação completa da obra escravista era a luta cotidiana na vida desses três personagens históricos de renome em nosso glorioso passado. Mas o que aconteceu com eles?

Deve-se perceber que a proclamação da República no Brasil finda irremediavelmente com a atuação dessa tríade na História do Brasil, de maneira mais contundente.

Nosso III Reinado não veio. Assim descrevo a situação no livreto de lançamento do INSTITUTO CULTURAL D. ISABEL I A REDENTORA:
Cremos firmemente que um certo democracismo míope impediu muitos de nossos melhores pensadores de ver a Monarquia Nacional brasileira, em especial o II Reinado e as Regências da Princesa, como uma época à parte em nossa História pátria. E o que é pior, segundo nossa visão, impediu à Princesa outro lugar na História que o de mera assinante da Lei Áurea. D. Isabel foi muito mais que isso!
Da própria Lei Áurea ainda está por se fazer uma análise mais metodologicamente séria, encarando-a não como mero instrumento legal de suspensão do trabalho escravo, mas como, naquele momento, de equiparação social entre brancos e negros. É isto o que precisa ser estudado. Certo é que especialistas em Direito Constitucional muito teriam a acrescentar nestas perspectivas. A luta de D. Isabel não era somente contra o trabalho escravo e suas cruéis facetas, mas contra suas conseqüências, seus enraizamentos em nossa sociedade. Era a mesma luta de Joaquim Nabuco e André Rebouças. O III Reinado, se viesse, muito provavelmente veria a ascensão destes dois senhores ao Ministério Imperial... mas não veio! A República dos generais e dos proprietários rurais chegou na frente.
(1)
Ainda um pouco antes, nesse mesmo texto, eu havia dito que:
Em seu lugar, tivemos nós a Primeira República - mais conhecida como República Velha -, e todos os processos a ela inerentes: o aumento do controle do Estado sobre a vida civil; a corrupção dos homens de governo; o vendilhismo e servilismo ao capital e domínio estrangeiros, sobretudo norte-americano; os genocídios de Canudos (1893-97) e do Contestado (1912-16), onde, pela primeira vez na História do Brasil, o governo dizimou milhares de campesinos miseráveis, exclusivamente por não aceitarem uma nova ideologia do poder; o afastamento da intelectualidade da vida política; a socialização das perdas; o coronelismo como prática efetiva de poder local, subvencionado pelo poder central; a reordenação das grandes cidades, sobretudo o Rio de Janeiro, segundo parâmetros progressistas de civilização, marcadamente eivados de racismo e outros segregacionismos, etc.
Assim, é desde já válido assimilar que se a obra nabuquiana não vingou entre nós tal se deu por causa da República e de suas conseqüências. E por falar na obra de Nabuco, passemos às considerações sobre o teor desta obra.
3. O PENSAMENTO DE JOAQUIM NABUCO
Definido sempre nos manuais biográficos como assíduo leitor de Thiers, George Sand, Scher, Lyttré, Laboulaye, D. Cortés e Renan, com este último tendo inclusive travado inúmeras correspondências, Nabuco é sempre tido como um grande pensador reformista - conservador, mas não reacionário, no dizer de Karl Mannheim.

Um dos filhos intelectuais de Joaquim Nabuco - senão seu principal herdeiro - foi precisamente Gilberto Freyre, o conterrâneo que fundou e presidiu a Fundação Joaquim Nabuco em Recife durante longos anos.

Assim ele descrevia seu mestre no prefácio que antecedia uma das edições de Minha Formação:
Joaquim Nabuco foi decerto o primeiro homem público brasileiro a descobrir-se com a própria mão de grande escritor; e em autobiografia tão psicológica como sociologicamente valiosa, além de notável pela qualidade literária. Uma das expressões mais altas da literatura em língua portuguesa. (...)
A formação de Joaquim Nabuco não parou aos 50 anos, idade em que deu forma definitiva a Minha Formação. Este livro, Nabuco parece o ter escrito pensando, com Montaigne, que já se dera bastante aos outros, e que tinha o direito e, talvez, o dever de, à base das experiências por ele já vividas, dar-se principalmente a si mesmo, contemplando-se, analisando-se, aperfeiçoando-se no seu modo interior de ser, escrevendo a história da sua própria vida ou da sua própria pessoa sem temer a acusação de narcisismo de parte de críticos mais ou menos levianos. (...)
Trazia da infância de menino de engenho, criado, pela madrinha pernambucana quase matriarcal, mais como filho do que como afilhado, mais como neto do que como filho, mais como menina do que como menino - tanto que em Massangana não aprendera a montar a cavalo - "o interesse pelo escravo". Um interesse com alguma coisa de docemente feminino no seu modo humanitário, sentimental, terno, de ser interesse. O que, sendo certo, antes engrandece do que diminui a figura na verdade quase apostólica de abolicionista em que se extremou Joaquim Nabuco.
Deixando a políticos convencionalmente masculinóides a visão apenas política ou somente econômica do problema brasileiro da escravidão, ele a todos excedeu na amplitude social, humana, suprapartidária, que deu ao seu apostolado a favor dos escravos. E foi esse apostolado que fez dele um radical, com alguma coisa de socialista - socialista ético - em sua crítica ao sistema de trabalho e de propriedade dominante no Brasil Império: homens donos de homens; terras imensas, dominadas feudalmente por umas poucas e privilegiadas famílias; escravidão; latifúndio.
"Acabar com a escravidão não basta", disse Joaquim Nabuco em discurso da sua fase de 'reformador social', aquela em que Minha Formação é recordada, embora de modo um tanto abstrato, em dois capítulos: o XXI e o XXII. E acrescentava: "É preciso destruir a obra da escravidão". Referia-se à expressão nefasta, ao sobejo pernicioso, de um sistema que, de resto, produzira o próprio Joaquim Nabuco e consolidara o próprio Brasil como nação a um tempo aristocrática e democrática. (...)
Da paisagem que Minha Formação evoca não há exagero em dizer-se que é a mais brasileira das paisagens: a do canavial; a do trópico úmido onde, com o canavial, desenvolveu-se a primeira civilização que deu expressão mundial ao Brasil; e que foi a civilização do açúcar, a do engenho; a da casa-grande; a da senzala; a da capela do engenho; a do rio ao serviço dos engenhos.
Outras paisagens vêm se acrescentando a esta, como características de um Brasil ainda agreste ou europeizado através de outras técnicas de produção: a das fazendas de criar; a das minas; a das estâncias; a das fazendas de café; a das fazendas de cacau; a dos seringais. Mas foi principalmente dentro da paisagem em que se formou Joaquim Nabuco que o Brasil adquiriu suas primeiras formas de sociedade nacional que foram as de uma sociedade familial, patriarcal; e as suas primeiras formas de sistema econômico de repercussão nacional, que foram as de uma economia de plantação à base da lavoura da cana e do fabrico do mascavo.
Igual a Massangana foram vários dos engenhos, das fazendas, das estâncias que concorreram para a formação dos outros Brasis, quer agrários, quer pastorís, no seu modo de ser patriarcais; e também para a formação de outros Joaquins Nabuco. Escrevendo sua autobiografia, "Nhô Quim" de Massangana não escreveu um livro apenas pessoal: escreveu uma parte da história da formação nacional do Brasil. (...) Sob este ponto de vista - o de um depoimento de interesse nacional, especificamenre nacional, dentro do humano - é obra que se inclui entre os mais expressivos livros escritos no Brasil.
(
MF-1999, orelha)
Novamente seguindo os passos que a orientação de Maria Alice Rezende de Carvalho nos dá acerca do pensamento de Joaquim Nabuco, pode-se dizer que sua obra seja em grande parte interpretativa do pensamento de Walter Bagehot, filósofo político inglês defensor da continuidade monárquica em Inglaterra, contra os ideais republicanos muito em voga na Europa posterior à Revolução Francesa. Segundo a Profª. Maria Alice, Nabuco teria extraído da obra de Bagehot, mormente, a perspectiva de que cultura e política não devam se apartar definitivamente, de que a tradição deve coordenar a obra política humana e de que as excitações revolucionárias têm de sempre vir acompanhadas de cautela e certa racionalidade.

Sua conversão definitiva ao ideário monárquico, ele mesmo atesta, dá-se como conseqüência da viagem à Europa (1871-1873) e do aprendizado constante do savoir-vivre inglês. A briosa terra anglo-saxã manteve sua Monarquia e sua Tradição e, certamente com elas, sua estrutura ancestral mágico-religiosa, evoluindo em práticas políticas republicanas, i.e. democráticas. Maria Alice chega a brincar, definindo Nabuco como "monarquista, porém republicano".

Em nada contraditório é, ao meu ver, que o espírito nabuquiano fosse em tempo aristocrático, em tempo democrático, pois é precisamente isto o que proporciona a manutenção da forma monárquica de governo entre os Estados que nela fincam suas raízes; daí a grande perda de nosso país com a imposição da República.

A propósito, fala o próprio Nabuco:
O leitor me perdoará a confissão, mas eu não devia calar em minha formação política a influência mundana estrangeira, a influência aristocrática, artística, suntuária que descrevi. Assim como a notei em um banquete real em Grosvenor Gardens, poderia notá-la em um baile dos Astors em Nova York; é a mesma impressão de uma tarde de corso na Villa Borghese, de uma manhã de drawing room em Londres, do grande dia de corridas em Ascot; a mesma do jubileu da Rainha em Westminster e do jubileu de Leão XIII no Vaticano. Não posso negar que sofri o magnetismo da realeza, da aristocracia, da fortuna, da beleza, como senti o da inteligência e o da glória; felizmente, porém, nunca os senti sem a reação correspondente; não os senti mesmo, perdendo de todo a consciência de alguma coisa superior, o sofrimento humano, e foi graças a isso que não fiz mais do que passar pela sociedade que me fascinava e troquei a vida diplomática pela advocacia dos escravos.
(
MF-1999, p. 97)
É isso! Ao ser humano, reconhecer-se como monárquico é saber equilibrar as aptidões aristocráticas e democráticas. Honra e glória sem justiça e liberdade são impensáveis, não só para Nabuco como para qualquer outro monarquista de sua época ou da atualidade.

Quanto àquilo que se costuma chamar "dualidade entre século e país" no pensamento social brasileiro do XIX, ter também afetado Nabuco, como atesta não somente Maria Alice como vários outros autores, o único comentário a acrescentar seria o de que ao Pai da Sociologia brasileira - é assim que Evaldo Cabral de Mello sugere que ele seja considerado - deve caber o lugar de um dos menos iludidos no que concerne à nossa evolução histórica nacional. Notadamente por enxergar que nossas reformas deveriam se dar no seio do regime monárquico é que Nabuco não se deixava perder no emaranhado cientificista das correntes de pensamento européias que advogavam a supressão e superação da Religião, a radical laicização do Estado e a afirmação de um antropocentrismo mal fundamentado e pouco realista. Para Nabuco:
Em relação à monarquia do Brasil aquele toque do espírito inglês bastou para traçar-me uma linha de que eu não poderia afastar-me, mesmo querendo. Era um ponto de honra intelectual, um caso de consciência patriótica definitivamente resolvido em meu espírito, aos vinte e três anos. Suprimir a monarquia que tínhamos, ficou claro para mim desde então, era uma política a que eu não poderia nunca associar-me; eu poderia tanto banir, deportar o imperador, como atirar ao mar uma criança ou deitar fogo à Santa Casa. Quebrar o laço, talvez providencial, que ligava a história do Brasil à monarquia, era-me moralmente tão impossível, como me seria no caso de Calabar entregar Pernambuco por minhas próprias mãos ao estrangeiro. Faltar-me-iam forças para uma intervenção dessas no destino do meu país. Seria atrair sobre mim um golpe de paralisia, ferir-me eu mesmo de morte moral. Minha coragem recuava diante da linha misteriosa do Inconsciente Nacional. O Brasil tinha tomado a forma monárquica, eu não a alteraria.
(
MF-1999, p. 109)

4. NABUCO E A RELIGIÃO

Aproveitando o ensejo desta última fala de Nabuco, abordamos agora sua religiosidade.

O que dizer do catolicismo de Joaquim Nabuco? O mesmo que de seu monarquismo. Que não foi o mesmo, no curso de sua atribulada vida.

O jovem autor de O Abolicionismo não pouca críticas - e nem deveria -, mesmo enquanto católico praticante, à Igreja Católica do Brasil, por sua inércia na questão da abolição da Escravatura.

O que difere no espírito nabuquiano é a época em que escreve os seus textos: quando jovem, dado a maiores rompantes, é ainda incapaz de perceber que a Igreja não pode, enquanto Corpo Místico de Cristo, ser responsabilizada por absolutamente nenhum erro. Sua Fé se contradiria se ele pensasse que a Igreja que não vemos é a mesma Igreja que vemos. Ou seja, Nabuco descobrirá, não somente com sua visita e audiência privada com o Sumo Pontífice Leão XIII no Vaticano, em 1888, como quando conclui suas avaliações acerca do legado civilizacional católico em nossa Pátria que Igreja e Clero não são sinônimos. Existe Igreja e homens da Igreja; se aos últimos, são dados o desacerto e a imperfeição, à primeira não se pode atacar, pois peca-se contra o Senhor nosso Deus.

Custa, mas Nabuco finalmente compreende sua pequeneza humana perante a grandiosidade da Igreja de Deus e dos seus representantes máximos. E diz:
Para mim teria sido uma diminuição sensível da emoção humana que a campanha abolicionista me causou, se eu não tivesse essa página da minha ida a Roma para reler, esse encontro conosco da simpatia e do fervor de Leão XIII. Por que tão tarde tive eu a idéia desse apelo, que deveria talvez ter sido o primeiro? Quero crer que na abolição, tão súbita foi ela, tudo veio a tempo... A lembrança dessa visita a Roma seguida tão de perto do fim da escravidão e da queda da monarquia, que era o termo forçado da minha carreira política, não podia deixar de crescer no vazio da minha tarefa acabada e da impossibilidade de assumir outra equivalente... Uma nova vida vai datar daquelas impressões religiosas assim assimiladas no ardor de um combate que devia encerrar e resumir a minha vida militante... Uma nova camada de minha formação desenha-se insensivelmente desde esse meu momentâneo contacto com Leão XIII - ou por outra, a camada primitiva começa a descobrir-se depois de perdido por tão longos anos o veio de ouro da infância... Qualquer que seja a verdade teológica, acredito que Deus nos levará de algum modo em conta a utilidade prática de nossa existência, e, enquanto o cativeiro existisse, estou convencido de que eu não poderia dar melhor emprego à minha do que combatendo-o. Essa vida exterior, eu sei bem, não pode substituir a vida interior, mesmo quando o espírito de caridade, o amor humano, nos animasse sempre em nosso trabalho. A satisfação de realizar, por mais humilde que seja a esfera de cada um, uma parcela de bem para outrem, de ajudar a iluminar com um raio, quando não fosse senão de esperança, vidas escuras e subterrâneas como eram as dos escravos, é uma alegria intensa que apaga por si só a lembrança das privações pessoais e preserva da inveja e da decepção. Essa alegria todos que tomaram parte no movimento abolicionista devem tê-la sentido por igual. Enquanto a luta contra a escravidão durasse, penso que a religião não sairia para mim do estado latente de ação humanitária... Muitas vezes mesmo, a religião não consegue desprender-se da tarefa ordinária da vida, e é somente quando essa tarefa acaba ou se interrompe que as perquisições interiores começam, que se quer penetrar o mistério, que se sente a necessidade de uma crença que explique a vida. Até lá basta o próprio papel que desempenhamos; o crítico não aparece sob o ator; a dúvida não distrai da ação exterior contínua. Enquanto se é um simples instrumento, por pequeno que seja o círculo traçado em torno de nós, a imaginação se encerra nele, e a vida interior não se insinua sequer à consciência... A ação é uma distração. É só acabada ela que em certa ordem de espírito as afinidades superiores se pronunciam... Quero crer, para os que sucumbem nessa fase, que o benefício que eles possam fazer elimine parte da impureza que carregam em sua inconsciência moral, ou religiosa - o que é o mesmo, e ainda pior... Não posso hoje pensar na minha ida a Roma em 1888 sem sentir que então sementes esquecidas nos primeiros sulcos da meninice reviveram, para germinar mais tarde ao calor de outras influências... Não fui em vão a Roma, do ponto de vista do meu sentimento religioso...
(MF-1999, p. 205)

Em outras palavras, o maduro homem Joaquim Nabuco resume o que significa não escrever, estudar, criticar, historicizar - diríamos nós, historiadores -, mas sim viver, praticar, sentir, amar nossa Religião.

O Nabuco que ainda não conhecera na alma o significado de ajoelhar-se perante o Vigário de Jesus Cristo e lhe tomar a Bênção, ouvir sua Santa Missa em pessoa, conviver com os sucessores dos Apóstolos por alguns dias, enfim reecontra-se em definitivo com seu Deus, com sua Santa e Imaculada Mãe. Aqueles que a Nabuco jamais haviam abandonado, mas que por motivos vários lhe foram por vezes muito distantes no curso de sua trajetória de vida estavam novamente presentes, no mistério que ele só fora capaz de sentir na meninice de Massangana.
5. NABUCO, A ALMEJADA ABOLIÇÃO E A INEPTA REPÚBLICA
Chegara o Brasil, na terceira Regência da Princesa Imperial D. Isabel, ao justo dia em que se veriam os negros livres do martírio escravista.

A ação incessante da Herdeira do Trono, somada ao irrestrito apoio pessoal do Imperador e de todos os demais membros da Família Imperial, protagoniza o áureo Domingo em que se assina a Lei 3353, declarando extinta a escravidão no Brasil.

A todos os demais próceres do abolicionismo, contudo, cabem vivas iniciativas naquela tarde gloriosa: José do Patrocínio a atirar-se aos pés da Princesa Redentora, Joaquim Nabuco a bradar dos balcões do Palácio que não há mais escravos no Brasil e André Rebouças a delirar de emoção.

Não é aqui o caso de se tentar fazer justiça quanto à memória da Princesa Imperial no que tange ao processo de supressão do elemento servil, cabendo apenas ressaltar que a análise que o próprio Nabuco faz da situação histórica de República no Brasil como decorrência da Abolição apressada da Escravatura, do 15 de Novembro como conseqüência do 13 de Maio, é a mesma que possuímos em mente, ainda que naturalmente acrescidas de considerações que se podem realizar hoje em dia.

Nabuco assim se expressa quanto à obra de nossa Realeza:
Tenho convicção de que a raça negra por um plebiscito sincero e verdadeiro teria desistido de sua liberdade para poupar o menor desgosto aos que se interessavam por ela, e que no fundo, quando ela pensa na madrugada de 15 de Novembro, lamenta ainda um pouco o seu 13 de Maio. Não se poderia estar em contacto com tanta generosidade e dedicação sem lhe ter um pouco adquirido a marca. Desde a Dinastia, que tinha um trono a oferecer, ninguém que tenha tomado parte em sua libertação o lastimará nunca. Não se lastima a emancipação de uma raça, a transformação imediata do destino de um milhão e meio de vidas humanas com todas as perspectivas que a liberdade abre diante das futuras gerações. Não há raças ingratas. "Senhor Rebouças - dizia a Princesa Imperial a bordo do Alagoas, que os levava juntos para o exílio - se houvesse ainda escravos no Brasil, nós voltaríamos para libertá-los".
Ah! decerto o trono caiu e muita coisa seguiu-se que me podia fazer pensar hoje com algum travo nesses anos de perfeita ilusão.., mas não, devia ser assim mesmo... As conseqüências, os desvios, as aberrações, estranhas e alheias, não podem alterar a perfeita beleza de uma obra completa, não destroem mais o ritmo de um ciclo encerrado... No dia em que a Princesa Imperial se decidiu ao seu grande golpe de humanidade, sabia tudo o que arriscava. A raça que ia libertar não tinha para lhe dar senão o seu sangue, e ela não o quereria nunca para cimentar o trono de seu filho... A classe proprietária ameaçava passar-se toda para a república, seu pai parecia estar moribundo em Milão, era provável a mudança de reinado durante a crise, e ela não hesitou; uma voz interior disse-lhe que desempenhasse sua missão, a voz divina que se faz ouvir sempre que um grande dever tem que ser cumprido ou um grande sacrifício que ser aceito. Se a monarquia pudesse sobreviver à abolição, esta seria o seu apanágio; se sucumbisse, seria o seu testamento. Quando se tem, sobretudo uma mulher, a faculdade de fazer um grande bem universal, como era a emancipação não se deve parar diante de presságios; o dever é entregar-se inteiramente nas mãos de Deus. E quem sabe... A impressão quando se olha da altura da posteridade, da história, é que o papel nacional da Dinastia tinha sido belo demais para durar ininterruptamente... Não há tão extensos espaços de felicidade nas coisas humanas; o surto prolongando-se traria a queda desastrosa. Essa Dinastia teve só três nomes. O fundador fez a independência do jovem país americano, desintegrando a velha monarquia européia de que era herdeiro; seu filho encontra aos quinze anos o Império enfraquecido pela anarquia, rasgando-se pela ponta do Rio Grande, e funda a unidade nacional sobre tão fortes bases que a Guerra do Paraguai, experimentando-a, deixou-a à prova de qualquer pressão interna ou externa, e faz tudo isso sem tocar nas liberdades políticas do pais que durante cinqüenta anos são para ele um noli me tangere... Por último, sua filha renuncia virtualmente o trono para apressar a libertação dos últimos escravos... Cada reinado, contando a última regência da Princesa como um embrião de reinado, é uma nova coroação nacional: o primeiro, a do Estado; o segundo, a da nação; o terceiro, a do povo... A coluna assim está perfeita e igual: a base, o fuste, o capitel. A tendência do meu espírito é colocar-se no ponto de vista definitivo... Deste o 15 de Novembro não é uma queda, é uma assunção... É a ordem do destino para que a Dinastia brasileira fosse arrebatada, antes de começar o seu declínio, antes de correr o risco de esquecer a sua tradição.
Decerto o exílio do Imperador foi triste, mas também foi o que deu à sua figura a majestade que hoje a reveste... Não, não há assim nada que me faça olhar para a fase em que militei na política com outro sentimento que não seja o de uma perfeita gratidão... (...) Ninguém pode afirmar que desprezando a abolição ela se teria mantido, ou que não teria degenerado... A abolição em todo o caso era o seu dever, e ela recolheu a glória do ato; deu-nos quitação...
Que seria feito na história da lenda monárquica brasileira se no mesmo dia se tivesse proclamado a república e a abolição? (...)
(
MF-1999, p. 184)

Assim, defendendo-se de qualquer ataque dos monarquistas quanto à não militância na Causa restauracionista que agitará boa parte da sociedade brasileira até a década de 20, quando morrem no exílio tanto Dona Isabel quanto seu filho e sucessor dinástico, Dom Luiz, Joaquim Nabuco limita-se a prestar a mais poética das homenagens aos Príncipes, ao descrever a legenda monárquica entre nós tendo como apoteose a Abolição.

A proclamação da República lhe retira da vida pública. É inexeqüível para Nabuco atuar num Brasil dessacralizado pela ausência da Monarquia.

Desta forma, somente o sentimento patriótico lhe anima quando chamado pelo Barão do Rio Branco a atuar diplomaticamente em favor de nosso País na Questão das Guianas e depois assumindo a Embaixada brasileira nos Estados Unidos.

Em Washington, encontra seu fim, em 1910, após ter ainda ajudado a fundar aqui a Academia Brasileira de Letras e de ter participado ativamente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
6. CONCLUSÃO
O pensamento nabuquiano persiste, segundo Cabral de Mello, sendo a matriz de grande parte do pensamento social brasileiro. O reconhecimento disso por parte da intelectualidade brasileira custou a chegar, mas, sobretudo desde 1999, quando comemorou-se o 150º aniversário de nascimento do grande pernambucano, sua obra tem sido revisitada e, queira Deus, possa ser cada vez mais atualizada e disposta como um dos grandes arcabouços culturais da nacionalidade brasileira.


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NOTA

1) Cf. CERQUEIRA, Bruno da Silva de: Instituto D. Isabel I - Texto de Lançamento, s/ed., Rio de Janeiro, 2001. (voltar)

BIBLIOGRAFIA
• ALMEIDA, Antonio da Rocha: Dicionário de História do Brasil, Enciclopédia do Curso Secundário - Globo, Ed. Globo, Porto Alegre, 1969.
• NABUCO, Joaquim: Minha Formação, 13ª edição, Ed. Topbooks, Rio de Janeiro, 1999.
O Abolicionismo, Coleção Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro, Folha de São Paulo/Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro/São Paulo, 2000.
• SALLES, Ricardo: Nostalgia Imperial, Ed. Topbooks, Rio de Janeiro, 1996.
• VELOSO, Mariza e MADEIRA, Angélica: Leituras Brasileiras, 2ª edição, Ed. Paz e Terra, São Paulo, 2000.

sexta-feira, 15 de junho de 2001

A Força da Tradição: como chegaram ao séc. XX as realezas e nobrezas europeias

• Trabalho de conclusão do curso de História Contemporânea II,
ministrado pelo Exmo. Sr. Prof. Dr. Oswaldo Munteal Filho na PUC-Rio •

Bruno da Silva de Cerqueira - junho/2001

TEXTOS PRINCIPAIS:
MAYER, Arno: Introdução & Concepções de Mundo IN A Força da Tradição, Cia. Das Letras, São Paulo, s/d

PROPOSTA
Impomo-nos aqui, muito breve e sumariamente, apontar modos interpretativos dos processos históricos de derrocada das Monarquias e suas Dinastias milenares na Europa pós-I Grande Guerra.

Ainda não temos possibilidade de realizar trabalho mais séria e metodologicamente acurado; assim, o que indicaremos aqui nada mais são que idéias a serem investigadas e tornadas plausíveis de apreciação positiva por parte da academia e da comunidade científica em geral.

A questão crítica gira em torno da idéia de que há muito pouca literatura acerca do universo político, social, econômico e sobretudo, mental, das antigas formas monárquicas de organização supra-nacional na Europa de antes de 1914. Perguntas se fazem imprescindíveis.

Como viviam os povos austríaco, húngaro, tcheco, eslovaco, croata, bósnio, sérvio, etc., no seio do Império dos Habsburg-Lothringen? Como se portavam os diferentes povos alemães, de particularidades milenares, no seio do II Reich? Em que, por exemplo, diferiam os bávaros dos prussianos e como os monarcas regionais alemães aceitaram a Ordem de Bismarck e dos Hohenzollern?

Por fim, como foi possível que, findada a I Grande Guerra, fossem solapados quase todos os monarcas europeus de seus tronos? O que se seguiu a esta ordem de fatos e processos jamais imaginados? Em que tudo isso contribuiu para a ascensão dos totalitarismos?

Muito minimamente, tentaremos apontar respostas aqui.

Fica claro, no entanto, que todas essas temáticas relacionam-se estreitamente com o estudo das idéias/conceitos de Nação, Identidade Nacional, Nacionalismo, Pátria, Império, Reino, Monarquia, etc.

Acrescidas que são, quase todas essas realidades humanas de um passado histórico remoto, nada mais se propõe que perscrutar sua historicidade, revelando, ou tentando revelar, redes mais intrincadas de origem das coisas.


ANÁLISE
Em nossa breve tentativa de historicização de Populismo e Identidade Nacional na América Latina - na disciplina de História da América III -, escrevemos o seguinte:
Tivemos diferentes propostas nacionalistas neste séc. XX, nós os latino-americanos e, em particular, os brasileiros. Se algumas delas em muito se influenciavam de suas similares européias, outras tentavam, quase que obstinadamente, buscar com exclusividade no NACIONAL as fontes de seu embasamento.

Todos os nacionalismos, porém, revelam um quê de auto-afirmação, e às vezes até de superimposição, do que seja o particular nacional. Em relações com o internacional, tais propostas estão muitas vezes eivadas de xenofobia e destoam consideravelmente do que a humanidade conhecera até então: o patriotismo.
De fato, compreendemos o nacionalismo como exacerbação do patriotismo.
O Brasil conheceu vários ismos de cunho patriótico no XIX: o romantismo, o indianismo e, em algum sentido, ainda que pese o dissabor, o escravismo - em concomitância e contradição com o também brasileiro liberalismo.
No XX, tivemos propostas diferentes da do Brasil-Império sendo colocadas aos olhos: após o advento de uma República que na visão de muitos já fora a vitória inconteste do americanismo e do estrangeirismo de uma maneira geral entre nós, e seguindo o curso histórico de decadência do liberalismo e do sistema agro-exportador, surgem as idéias nacionalistas, como forma de leitura de um Brasil verdadeiro, total, em resumo, brasileiro. Aqui, leia-se autárquico, autônomo, absolutamente independente.
Advêm o catolicismo-patriótico, o integralismo, o populismo varguista.
Sobre a questão da Identidade Nacional na produção de um novo ethos brasileiro após a Revolução de 30 e em suas similitudes com o peronismo argentino, é que faremos nossas colocações aqui, em abordagem sumária, tendo como fonte principal o texto
Identidade Nacional e Produção de Sentimentos, de Maria Helena Capelato in MULTIDÕES EM CENA. PROPAGANDA POLÍTICA NO VARGUISMO E NO PERONISMO, Campinas, SP, Ed. Papirus, 1998. (...)
POPULAR = NACIONAL,
EQUAÇÃO VERDADEIRA?
Uma das mais básicas afirmações do varguismo e do peronismo e que constitui preceito do populismo é a de que POPULAR = NACIONAL. Se assim é, o que é o POVO e o que é a NAÇÃO?
Nos atemos em grande parte à consideração de que, tanto para Vargas quanto para Perón, seus movimentos eram revoluções nacionais (Capelato, 1998). De fato, para ambos, o nacional é o popular. A grande questão é: quem não é popular, então não é nacional. Se há povo e anti-povo, então muitos "nacionais" serão "anti-nacionais", como no caso de inimigos do regime?
É-nos nítido uma mudança de
ethos com a ascensão dos populismos, bem como dos demais nacionalismos world-wide, na associação entre Povo e Nação de maneira antes nunca tão intrincada.
Isto é, se antes, na Europa, por exemplo, a Nação era o Estado, o Estado era o Rei & o Rei era a Pátria, tudo isto se confundindo bastante, como entender agora que a Nação seja apenas o Povo? Ao acaso pode-se esquecer que na cosmovisão aristocrática o Povo é apenas o conjunto dos homens comuns?
Assim, com as novas ordens e o novo poder nas mãos dos nacionalistas, a quem se deve atribuir o adjetivo - sempre honroso - de NACIONAL?
Se na mentalidade anterior - que, lembremos, tinha sob vários aspectos milhares de anos - Adolf Hitler, Benito Mussolini e Iossif Djougatchvilli eram comuns (i.e., não-nobres e não-principescos), como admitir agora que eles sejam o Führer, o Duce e o Stalin? Complicado, não?
Atestado está por inúmeros historiadores e sociólogos que se debruçaram sobre os totalitarismos europeus a dificuldade das autoridades nazistas lidarem com os príncipes e nobres alemães. Arno Mayer, Peter Gay e mesmo Norbert Elias já chegaram a apontar o profundo desprezo que os nazistas possuíam pela antiga realeza e nobreza germânica: quando não aceitavam a cooptação, os membros dessas classes eram presos, torturados e até mortos.
Ainda que consideremos insuficientes as análises até agora existentes a respeito, fica a impressão de que, no Brasil e na Argentina também deve-se buscar alguma coisa no imaginário monárquico, aqui entendido como o IMAGINÁRIO DO UM QUE GOVERNA, para enriquecer a discussão sobre varguismo e peronismo.
Também alguns de nossos autores já chegaram a iniciar apontamentos nesse sentido: José Murilo de Carvalho e Lilia Moritz Scwartz, por exemplo, ao identificarem a substituição do mito Dom Pedro II-Pai pelo mito Getúlio-Pai. A persistência da mística real, no nosso caso imperial, ainda que na República...
O que dizer da aura de prestígio da inesquecível Evita, a adorada Primeira-Dama da Argentina? Não raia a adoração das massas à aclamação dos povos de outrora? Não é a sua biografia uma história de arrependimento, penitência, glorificação, entronização e, finalmente, santificação? Até que ponto não é Eva Perón uma rainha para os argentinos, é fundamental que se questione.
Resumidamente, basta inferir que a idéia de Pais da Pátria fora sempre privativa dos Reis, até o XX.

As diferenças, contudo, entre varguismo e peronismo, por estes apontamentos que fazemos deverão ser sempre relevantemente salientadas, pois a História do Brasil é
sui generis no contexto latino-americano: a Monarquia Nacional brasileira (1822-1889) faz-nos destoar da República Argentina, desde a era das independências. Mesmo assim, deve-se perscrutar o que de persistência do imaginário monárquico-cristão (católico) há em nossos fenômenos políticos populistas.
Afinal, a busca pela unicidade é um dos pilares do Cristianismo: PARA QUE TODOS SEJAM UM. Universo = diverso no uno... (...) (1)
Esta nossa citação serve para elucidar que de fato há muito nos interessamos na compreensão do ethos relacionado à Realeza e as Nobrezas, no Brasil e no mundo.

De importante nela ressalte-se o que dissemos quanto aos ditadores totalitaristas do séc. XX.
A Rússia, por exemplo, chega ao séc. XX com o czarismo, sistema que em muito ainda tem de ser estudado; uma vez que foi lá que se produziu a Revolução de orientação marxista primeiramente na História Universal, pode-se perfeitamente entender o quanto é obscuro e complexo para o Ocidente o universo russo anterior a 1917.

Sabemos contudo que a Rússia, constituída de um sem-número de países e povos menores, com línguas, dialetos e histórias diversas, vivia sob o jugo de um monarca, o Czar e Autocrata de Todas as Rússias - seu título oficial -, o Chefe da Casa de Romanoff-Holstein-Gottorp. Fruto de trezentos anos de poder autocrático centralizado nas mãos dos Romanoff, o último imperador russo, Nikolai II, era inábil e infantilizado. Os erros estratégicos e atrocidades cometidos pelos seus ministros e generais, somados à sua tumultuada vida privada, fazem com que se dilapide em menos de vinte anos uma ordem relativamente coesa que havia herdado de seu pai, o Czar Aleksandar III.

As conseqüências mundialmente célebres dos resultados das Revoluções, a menchevique e a bolchevique, que depõem e prendem a Família Imperial russa em 1917, são o terrível fuzilamento do Czar, da Czarina Aleksandra, do Czarevitch Alexei, mais quatro filhas e dois funcionários régios - recentemente canonizados pela Igreja Ortodoxa -, além da incansável perseguição e do aprisionamento de mais vários grão-príncipes, príncipes e nobres russos no curso da Guerra Civil entre brancos e vermelhos.

Como pôde - e aqui é que gostaríamos de acrescentar, no futuro, com o auxílio da Antropologia Política e até da Psicanálise -, haver tal mudança de mentalidade?
Como foi possível a um Lenin ou a um Hitler, por exemplo, assinarem as sentenças de morte de seus próprios Imperadores, de seus próprios Soberanos?

Há nisso somente ambições políticas, inerências revolucionárias, regicídios comuns - a História conhece tantos outros - ou absoluta abstração de Deus, absoluta negação da transcendência, absoluta revolta com a Religião, absoluto ódio contra a Igreja (Católica, particularmente, mas tb. a Ortodoxa e qualquer outra idéia de Igreja)?

Muito estranho que até hoje as análises históricas se tenham centrado em discutir origens e conseqüências dos males totalitaristas e em quase nada tenham se voltado para a análise do mágico-religioso nestas perspectivas; talvez a majoritária presença de historiadores e cientistas sociais de postura materialista explique a questão. Pois passado o marxismo como escola filosófica preponderante nos quadros da academia, mesmo no culturalismo persiste o anti-monarquismo, o anti-catolicismo, o pró-republicanismo, etc.

Não deixa de forma alguma de ser interessante que historiadores de tradição e aprendizado marxista tenham percebido nuanças históricas absolutamente desprezadas - ao que tudo indica, propositalmente -, chegando mesmo a criar uma Nova História, não só na França, como na Inglaterra, nos Estados Unidos e em boa parte do mundo.

Desta forma é que se pode encarar o trabalho de Arno Mayer como ilustrativo in totum destas novas posturas historiográficas. Afinal, diz ele em A Força da Tradição:
A terceira e principal premissa deste livro é a de que a antiga ordem européia foi totalmente pré-industrial e pré-burguesa. Durante muito tempo, os historiadores enfocaram com demasiada insistência o avanço da ciência e da tecnologia, do capitalismo industrial e mundial, da burguesia e das classes médias, da sociedade civil liberal, da sociedade política democrática e do modernismo cultural tal. Estiveram muito mais preocupados com essas forças inovadoras e a formação da nova sociedade do que com as forças de inércia e resistência que retardaram o declinio da antiga ordem. Embora num certo nível os historiadores e cientistas sociais ocidentais tenham repudiado a idéia de progresso, num nível diferente continuaram a acreditar nela, ainda que em termos determinados. Essa crença tácita e duradoura no progresso vem acompanhada por uma intensa aversão à paralisia e à regressão históricas. Houve, assim, uma tendência marcante a negligenciar, subestimar e desvalorizar a resistência de velhas forças e idéias e o seu astucioso talento para assimilar, retardar, neutralizar e subjugar a modernização capitalista. incluindo até mesmo a industrialização. O resultado é uma visão parcial e distorcida do século XIX e do ínicio do século XX. Para obter uma perspectiva mais equilibrada, os historiadores terão de considerar não só o grande drama da transformação progressiva, mas também a implacável tragédia da permanência histórica, e investigar a interação dialética entre ambas. (2)
Na Alemanha, assimilar o que foi e o que ainda hoje representa o final da I Guerra e a deposição de cinco Dinastias reais (Prússia, Baviera, Saxônia, Wurtemberg e Hanôver), quatro Dinastias grã-ducais (Oldemburgo, Saxe-Weimar, Mecklemburgo-Schwerin e Mecklemburgo-Strelitz), seis Dinastias ducais (Anhalt, Hesse, Baden, Saxe-Coburgo-Gotha, Saxe-Meiningen e Saxe-Altemburgo) e seis Dinastias principescas (Lippe, Schaumburgo-Lippe, Hohenzollern-Sigmaringen, Reuss, Schwarzburgo e Waldeck-Pyrmont), cada uma delas alçada ao poder quase mil anos antes, é, no mínimo, melindroso.
Neste mundo, compreender a disputa pelo poder e a primazia dos povos teutônicos entre a Casa de Habsburgo e a Casa de Hohenzollern. Investigar o que representavam os parlamentos hereditários em cada uma dessas pequenas nações alemãs; quem eram os príncipes mediatizados e que poder eles detinham até 1918; qual papel cabia aos nobres (condes, barões e senhores), nesta constelação monárquica e aristocrática dos germanos do séc. XX.
O que a queda, o exílio e a perseguição dos Habsburg, a morte do Imperador Karl I - recentemente beatificado pela Igreja Católica - têm a dizer dos princípios do século passado?
No universo latino, estudar os significados da Unificação Italiana, conhecendo e investigando as Dinastias insulares reinantes até a década de 1860. Quem eram os Borbone das Duas Sicílias, os Asburgo da Toscana, os Borbone de Parma? Como viviam suas cortes e seus sistemas particulares de nobreza, exército; como viviam os povos sob suas administrações? O que eram os Estados Pontifícios; como o Papa os governava?
O que a Itália unificada sob a égide dos Savóia (monarcas do Piemonte e da Sardenha) representou para o imaginário cristão europeu de fins do XIX?
O que as monarquias espanhola e portuguesa representavam nesse universo? Como se deu a I República na Espanha e a volta da Monarquia? Quais as crises afetaram os reinados dos Bragança-Saxe-Coburgo em Portugal? Por que a República portuguesa precedeu a I Guerra Mundial, em 1910, adiantada pelo dramático regicídio de D. Carlos I e D. Luiz Filippe no Terreiro do Paço, em 1908?
Como viviam e se relacionavam esses Primos Reais que governavam a Europa, às vezes com mãos de ferro, às vezes com santidade cristã, até o advento do terrível fratricídio de 1914-18?
Já está mais do que na hora, ao nosso ver, de deixar com que esses príncipes e seus descendentes falem e se deixem melhor entender. Numa perspectiva de volta da monarquia nos Bálcãs, como vem acontecendo recentemente com a Bulgária e a Iugoslávia, sobretudo, façamos, também nós brasileiros - cuja Dinastia Imperial é européia - novas perguntas para antigas questões e tentemos dar a nossa contribuição à História.

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NOTAS
1) Cf. CERQUEIRA, Bruno da Silva de: Populismo e Identidade Nacional, Apontamentos sobre Varguismo e Peronismo, s/ed, Rio de Janeiro, 2001. (voltar)

2) Cf. MAYER, Arno J.: A Força da Tradição, a Persistência do Antigo Regime, p. 14, Cia das Letras, São Paulo, s/d. (voltar)

domingo, 10 de junho de 2001

A intelectualidade brasileira e a Identidade Nacional

A INTELECTUALIDADE BRASILEIRA E A IDENTIDADE NACIONAL
(Apontamentos)

• Trabalho de conclusão do curso de História do Brasil VII,
ministrado pela Exma. Sra. Profª. Dra. Graça Salgado na PUC-Rio •



TEXTOS
SEVCENKO, Nicolau: O exercício intelectual como atitude política: os escritores cidadãos
IN Literatura como missão, Ed. Brasiliense, São Paulo, 1995
ORTIZ, Renato: Memória coletiva e sincretismo científico: as teorias raciais do séc. XIX e Da raça à cultura: a mestiçagem e o nacional
IN Cultura Brasileira e Identidade Nacional, Ed. Brasiliense, São Paulo, s/d
OLIVEIRA, Lúcia Lippi: Desde quando somos uma nação? e Ufanismo: versão otimista da nação
IN A Questão Nacional na 1ª República, Ed. Brasiliense, São Paulo, s/d
CARVALHO, José Murilo de: O Rio de Janeiro e a República
IN Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, Ed. Cia. Das Letras, São Paulo, 1999

PROPOSTA
Relacionar os textos, ressaltando o que há de crítico no processo de nascimento das Ciências Sociais brasileiras e seu entroncamento com as formulações intelectualizadas de nossa Identidade Nacional.

Analisar criticamente as proposições sociais da Geração de 1870 e seus resultados concretos na História brasileira que se seguiu a esta década.

O que as correntes do pensamento científico da época - período de transição da Monarquia para a República; da escravidão para o trabalho livre - tinham a dizer da evolução histórica do Brasil?

Investigar, ainda que sumariamente, em que a questão racial se relaciona com o desenvolvimento de nosso pensamento social e as muitas derivações que dessa questão se expressaram no contexto político-econômico da época.

ANÁLISE

1. INTRODUÇÃO
Apresenta-se no Brasil do Oitocentos o complexo amálgama de um Estado colonial dependente, atrasado, datando trezentos anos de dominação portuguesa e mostrando-se semelhante, na perspectiva colonizatória, aos países vizinhos seus no continente sul-americano.

O tufão napoleônico faz transportar para o Estado do Brasil a Corte lusitana: mais de dez mil pessoas, incluindo príncipes, nobres, clérigos, burocratas estatais e funcionários régios aportam em Salvador, dirigindo-se depois ao Rio de Janeiro e aqui permanecendo, desde o início de 1808.

Uma rainha impossibilitada de reinar por problemas de saúde mental, naqueles fins do absolutismo monárquico português, vem acompanhada do filho único, o Príncipe-Regente D. João que ostenta, enquanto herdeiro da Coroa lusa o título de PRÍNCIPE DO BRASIL (1), trazendo consigo materialmente boa parte do riquíssimo acervo da Casa Real e historicamente algumas das realidades inerentes ao contexto metropolitano de então.

Viu-se o Brasil, mais especificamente o Rio de Janeiro, transformar-se apressadamente em sede concreta do já problemático Império ultramarino português. O período joanino engrandeceu-nos notavelmente; nada pode negá-lo. Principalmente o Rio foi forjado como a Nova Lisboa, a Lisboa tropical.

O Estado do Brasil foi em 1815 elevado pelo Congresso de Viena à categoria de Reino Unido a Portugal e Algarves, com a conseqüente aclamação de D. Maria I como Rainha do Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves.

Em 1816, falece a Rainha louca e ascende ao trono luso-americano D. João VI, nosso hábil ainda que pouco sagaz primeiro Rei de fato. A História de Portugal, desde a invasão do General Junot até 1820 é uma sucessão de investidas militares, guerras e pequenas revoluções que em muito arruínam a pátria-mãe. As Cortes portuguesas, repletas de parlamentares liberais exigem em 21 o retorno do Rei a Lisboa e a recolonização do Brasil.
D. João cede em parte, embarcando desgostoso para Portugal, deixando, entretanto, o Príncipe Real D. Pedro, seu filho e herdeiro, como Regente do Brasil.

Segue-se no Brasil a fomentação intelectual de parte da elite dirigente, balizada em amplo apoio popular, de tornarmo-nos independentes da antiga metrópole, de constituirmo-nos Império soberano.

Acaba por aderir o próprio Casal Príncipe Real a tais idéias, que de tônus liberais, já apontam algum republicanismo. Nasce em 1822 - mais em 12 de outubro que em 7 de setembro, diga-se de passagem - a Monarquia Nacional brasileira, em seu estado de facto, ainda que não de jure. O Império do Brasil, nascido de um processo histórico considerado ultra-revolucionário para os parâmetros reacionários e restauracionistas da época, marcada pelo espírito do Príncipe de Metternich e da Santa Aliança, constitui-se numa "faca de dois gumes" ao poderio e supremacia européia na História Universal.

Se de um lado tal Império frustrava ideais republicanos e amedrontava os hermanos latino-americanos do Brasil - Simon Bolívar será um eterno preocupado conosco -, de outro apontava a não adesão de um Príncipe Herdeiro europeu ao imaginário reabsolutizante das elites governantes centro-européias de então.

A filha do Imperador da Áustria havia sido juntamente com D. Pedro aclamada imperatriz deste Estado soberano sul-americano. As tratativas diplomáticas para que tal situação se enquadrasse nos moldes monárquicos tradicionais não tardaram e cedo surgiram acordos de reconhecimento de nossa Independência, por parte de Portugal, em que a Áustria formulava que se desse uma cessão de direitos no caso brasileiro, eliminando assim qualquer resquício revolucionário de nosso processo emancipacionista (2).

Foi assim que em 1825, o idoso e debilitado Rei D. João VI reconheceu a independência do Império do Brasil do Reino de Portugal, garantindo ao filho a condição de Imperador, enquanto herança sua. Isto é, o Imperador D. João cedeu ao Imperador D. Pedro os direitos dinásticos de governança do Brasil, por meio de um decreto real.

O I Reinado brasileiro é conturbado, bem o sabemos, interna e externamente. As relações com Inglaterra, Portugal, Áustria e Estados Unidos estarão sempre em primeiro plano quando se pensa em relações internacionais - e comércio exterior mais especificamente - neste período.

Internamente, a política caminhará com a promulgação da Constituição de 1824 e as conseqüentes crises no Executivo e no Legislativo entre o Imperador e a classe dirigente.

A vida pessoal de D. Pedro I, marcada pela intempestividade e o clamor de heroicidade, pela herança mental absolutista, além de uma sexualidade pouco aceita na época (don-juanismo exacerbado), resultará em graves cisões no governo. A mal-fadada Guerra da Cisplatina e a morte da Imperatriz D. Maria Leopoldina (1825) - que se constitui na primeira manifestação de luto nacional brasileiro, historicamente - e os sucessivos atritos com parlamentares, jornalistas e profissionais liberais de projeção, no plano interno; a morte do Rei seu pai (1826), sua abdicação de Portugal em sua filha D. Maria da Glória e a conseqüente crise real portuguesa pelo apossamento da Coroa pelo irmão D. Miguel, no plano externo, acarretaram a D. Pedro tristes conseqüências no desenrolar de seu reinado. Seu segundo casamento em 1829 com a Princesa bávara e napoleônica Amélie de Leuchtenberg - que lhe trouxe um maior regramento na vida íntima - e as tentativas de minimizar problemas do Brasil e de Portugal simultaneamente não chegaram a conduzi-lo a um melhor estado de sua imagem pública, o que o levou à abdicação do Brasil em seu filho único e herdeiro, D. Pedro de Alcantara, em 1831.

Segue-se na História política brasileira as Regências em nome do Imperador-menino D. Pedro II, período de conturbação social e estouro de revoluções regionais Brasil adentro. Em 1840, adianta-se a maioridade do Imperador, que é coroado e sagrado aos 15 anos incompletos e inicia efetivamente seu reinado.

O II Reinado é, sob todos os aspectos, a fonte mais importante na História do Brasil do início de apreciação que se deva fazer acerca da construção da Identidade Nacional brasileira. É ali que se fundamenta, ou ao menos se origina, quase toda a perspectivação da nacionalidade brasileira. Muito mal estudados e historicizados estão até o momento, em nossa opinião, os estreitos liames entre a Realeza e nossa Identidade Nacional.

O que faremos aqui nada mais é que apontar alguns indícios de percepção nossa, voltando-nos aos textos principais e de apoio dados, em vista de melhor perceber o desenvolvimento de nossa Identidade Nacional e o nascimento das modernas Ciências Sociais brasileiras e suas problemáticas adjacentes, contextualizando a transição do II Reinado para a República instalada pelo golpe de 15 de novembro de 1889.
2. PROPOSTAS IDEAIS NO II REINADO:
ROMANTISMO, INDIANISMO, NATIVISMO

Na espreita da formação de uma identidade nacional, inicia-se no reinado do Imperador D. Pedro II uma ideologia de Estado que visa edificar a brasilidade enaltecendo o elemento indígena, ou seja, aquilo que possuía o país antes da chegada do elemento branco.

O romantismo encontra assim terreno fértil no Brasil para produzir em mentes perspicazes uma História, uma Arte, uma Literatura nacionais. O Imperador, principal mecenas e um dos maiores articuladores deste edifício estatal, patrocina os jovens escritores, pintores e musicistas na construção desse Brasil brasileiro.

É o tempo de José de Alencar, Gonçalves Dias, Joaquim Manoel de Macedo, Castro Gomes, Vítor Meirelles, Araújo Porto-Alegre, etc. Também aí nascem o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e as inumeráveis imperiais instituições de cunho nacionalizador. Nas décadas de 40, 50 e 60 florescem os ideais românticos de um Brasil grande, forte, soberano. Não se problematiza a escravidão negra de maneira séria, não se lega-lhe o status de questão social.

Advém a década de 70 e alguns intelectuais começam a pensar o Brasil de outra forma. Identificam nosso atraso, numa tomada de consciência nitidamente marcada pelas correntes de pensamento cientificistas em voga na Europa de então: positivismo, evolucionismo, darwinismo social.
3. A GERAÇÃO DE INTELECTUAIS
BRASILEIROS QUE SE INICIA EM 1870

A erudita obra Literatura como missão, de Nicolau Sevcenko, primeiramente publicada em 1983, e que pode certamente já ser considerada um clássico nas Ciências Sociais, investiga as origens dos pensamentos que dominarão o cenário intelectual brasileiro posterior á década de 1870. O livro é, em nossa opinião, um verdadeiro manual aos interessados em História do pensamento social brasileiro; a riqueza vocabular aí impressiona.

Lembremo-nos que este ano é paradigmático no sentido de ver lançar, no interior de São Paulo, o Manifesto Republicano e a fundação do partido que advogará a implantação da forma republicana de governo em nossa pátria.

Os escritores de então, por Sevcenko chamados de mosqueteiros intelectuais, em alusão à própria auto-intitulação de um grupo de escritores cariocas, se acham investidos de um projeto modernizante do Brasil, que viesse a extinguir definitivamente entre nós o atraso, a herança colonial escravista, até a própria forma monárquica de governo, o clericalismo social dominante, etc.

Diz Sevcenko:

Arrojados num processo de transformação social de grandes proporções, do qual eles próprios eram fruto na maior parte das vezes, os intelectuais brasileiros voltaram-se para o fluxo cultural europeu como a verdadeira, única e definitiva tábua de salvação, capaz de selar de uma vez a sorte de um passado obscuro e vazio de possibilidades, e de abrir um mundo novo, liberal, democrático, progressista, abundante e de perspectivas ilimitadas, como ele se prometia. A palavra de ordem da "geração modernista de 1870" era condenar a sociedade "fossilizada" do Império e pregar as grandes reformas redentoras: "a abolição", "a república", "a democracia", O engajamento se torna a condição ética do homem de letras. Não por acaso, o principal núcleo de escritores cariocas se vangloriava fazendo-se conhecer por "mosqueteiros intelectuais".'
Os tópicos que esses intelectuais enfatizavam como as principais exigências da realidade brasileira eram: a atualização da sociedade com o modo de vida promanado da Europa, a modernização das estruturas da nação, com a sua devida integração na grande unidade internacional e a elevação do nível cultural e material da população. Os caminhos para se alcançar esses horizontes seriam a aceleração da atividade nacional, a liberalização das iniciativas - soltas ao sabor da ação corretiva da concorrência - e a democratização, entendida como a ampliação da participação política. Como se vê, uma lição bem acatada de liberalismo progressista. Para completar, a assimilação das doutrinas típicas do materialismo cientificista então em voga, que os lançou praticamente a todos no campo do anticlericalismo militante.
Toda essa elite europeizada esteve envolvida e foi diretamente responsável pelos fatos que mudaram o cenário político, econômico e social brasileiro: eram todos abolicionistas, todos liberais democratas e praticamente todos republicanos. Todos eles trazem como lastro de seus argumentos as novas idéias européias e se pretendem os seus difusores no Brasil. Tomemos apenas alguns exemplos dentre alguns dos mais notáveis desses homens. Inicialmente, Tobias Barreto, o sergipano em torno do qual iria se aglutinar a chamada Escola do Recife e cuja influência marcaria a obra de intelectuais de relevo como Sílvio Romero, Clóvis Bevilacqua, Arthur Orlando, Araripe Junior, Capistrano de Abreu e Graça Aranha, dentre muitos outros.
(
Literatura como missão, pp. 78, 79)
Após isso, ele tece uma breve história daquilo que considera a postura social de grupo que os intelectuais, nos diferentes cantos do orbe, assumirão como conseqüência da passagem de sociedades arcaicas para as modernas. Naquelas, os altos índices de analfabetismo, os ainda existentes laços vassálicos, impediam o avanço do capitalismo industrial. Fosse no Império Russo ou nos Reinos de Espanha e Portugal, houve contemporaneamente aos nossos mosqueteiros intelectuais plêiades de homens das letras, auto-investidos na função de dar luzes aos seus povos, leva-los à civilização.
A geração de 1870 começa a decepcionar-se mais profundamente com o correr dos anos 80 e 90 no Brasil. O atraso brasileiro, que a imensa maioria deles identificava com a escravidão e a própria Monarquia; o clericalismo permanente da sociedade e a falta de urbanização dos grandes centros, sobretudo Rio de Janeiro, se lhes parece repugnante.
Acompanham o desenrolar da crise econômica que se segue à Abolição da Escravatura (1888) e apesar de comemorarem uma grande vitória, persistem no engajamento político republicano. Mesmo constatando a obviedade de o povo jamais unir-se numa onda revolucionária para proclamar a República, continuam nossos mosqueteiros intelectuais a crer num surto de civismo nacional que provocasse a queda da Monarquia, e com ela se enterrasse o passado.

Tal não ocorre com a vitória da quartelada de 15 de novembro de 1889 e eles, apesar de num primeiro momento aderirem ao golpe, logo sentem o peso do militarismo: a intolerância do Mal. Deodoro e a fúria desmedida do Mal. Floriano. As sucessivas crises políticas e econômicas - mormente o Encilhamento em 1891, que empobreceu um sem-número de famílias antigas da aristocracia rural, enchendo de dividendos os novos-ricos da época, quase todos scrocks - e as suas conseqüências nefastas, de maneira especial nas censuras que impingiam aos jornais e nas perseguições, prisões e tolhimentos de alguns dentre esses mesmos mosqueteiros fizeram com que Lopes Trovão, um dos mais ativos próceres republicanos, já em 1890 declarasse: "essa não é a República dos meus sonhos".

Os mosqueteiros intelectuais transformam-se em paladinos malogrados...

É significativo que Sevcenko perceba o quanto se apresentou caótica e tirânica a República no Brasil aos olhos de nossos homens das letras. Diz ele:
(...) Não há, praticamente, partidos políticos no sentido clássico do conceito e esse foi um dos traços mais notáveis da Primeira República, porque não se mantinham interesses rigorosamente conflitantes nos meios políticos e entre os grupos que sobrenadavam à sociedade. Não que não houvesse oposição, os próprios intelectuais a representavam com a máxima substância, mas ela foi simplesmente varrida da vida pública e dos meios oficiais para a margem e a miséria, sob o estigma de anti-social e perniciosa.
A República, contraditoriamente, viera consagrar a vitória da irracionalidade e da incompetência, criando uma situação "onde tudo se deseja inócuo, tudo incaracterístico, tudo traçado, tudo prostituído, para fáceis mistificações, para predomínios idiotas e momentâneos, mas ferrenhos e desesperadores das verdadeiras almas".
Um dos temas pois, mais característicos e disseminados da critica intelectual do período passou a ser a recriminação da "inversão das posições nesse país". Por toda parte ele ressalta, explícito ou apenas velado, nos textos ou nos versos.
Os homens de talento sentiam-se unanimemente repelidos e postos de lado em favor de aventureiros, oportunistas e arrivistas sem escrúpulos. (...)
O momento era o da "imbecilidade triunfante", diria Euclides da Cunha. Teve ampla circulação o neologismo "mediocracia" com carga semântica que significava o "regime das mediocridades". Pessimismo e inconformismo se reuniam numa atitude crítica visceral: "Entre nós a incompetência é credo, doutrina, religião, poder". Foi esse mesmo impulso que arrastou os grupos intelectuais a prestarem apoio irrestrito a Rui Barbosa em suas campanhas políticas, no qual viam representado um membro da seleta inteligência nacional lutando contra o mesmo desprestígio e o mesmo chão estéril: "um indesejável viciado pelo crime de valer mais que os outros".
(
Idem, pp. 87,88)
Prosseguindo nas citações dos autores estarrecidos com a República da miséria artística e intelectual, Sevcenko inicia a abordagem do tema de crise da literatura e fragmentação da intelectualidade subseqüentes aos processos afirmatórios - auto-afirmatórios, diria-se em Psicanálise - da República de 89.

O Rio de Janeiro das primeiras décadas do séc. XX, espécie de sede do saber nacional enquanto Capital Federal, será procênio das mudanças que efetivamente ocorrerão como conseqüência do aceleramento da proximidade com a modernidade brasileira. A perda dos valores tradicionais, o arrivismo ilimitado, as novas faces do poder instituído, tudo será parte constituinte dessa nova fase da História do Brasil.

Mesmo com as perturbações de censura e a abundância do jornalismo meramente cronista, desenvolve-se um "novo jornalismo", voltado para a crítica política.

Este novo jornalismo, contudo, encarna de fato a ampliação dos meios de comunicação (jornais, revistas, periódicos), o que faz literalmente com que os intelectuais estejam empregados em serviços menores, teoricamente, i.e., necessitem de trabalho para o ganha-pão. A crítica, talvez por isso, nota Sevcenko, diminui o acirramento.

No Rio de Janeiro da Belle Époque, o chic e o smart não aceitam a presença irritante do antigo, do tradicional. Isto vira sinônimo de velho, ultrapassado... E se, apesar disso, dividiram-se sempre os nossos intelectuais em modernos deslumbrados e modernos críticos, pode-se perscrutar perfeitamente que ao segundo grupo não sobrou mais que a ação na História, pois coube ao primeiro o embasamento do savoir-faire pernicioso da República.

Dentro dos apontamentos que começamos a tecer aqui, fica nítido que a obra republicana em nada auxiliou o fomento cultural, artístico e principalmente intelectual na sociedade brasileira de princípios do século. Bem ao contrário, ela foi mesmo responsável pelo gradual afastamento e redirecionamento da atividade do pensador brasileiro que não fosse cooptado para os seus serviços. Afora que a crítica, em seu sentido elevado, jamais fora bem vista na República; militares ou civis, os novos "donos do poder" no Brasil eram bastante avessos ao exercício intelectual enquanto constância de demandas de cidadania.

Nesse ínterim, questiona-se se o fim da Monarquia, o não advento do III Reinado e da Imperatriz D. Isabel I, não foi uma grande interrupção no processo de consolidação da Identidade Nacional brasileira, com o riquíssimo apanágio da tradição, simbolicamente representado pela Dinastia, tendo sido descartado.
4. O PROBLEMA MESOLÓGICO E RACIOLÓGICO
O antropólogo Renato Ortiz, em sua obra Cultura Brasileira e Identidade Nacional, analisa a questão, enfocando na chamada geração de 1870 da intelligentsia brasileira, três nomes que considera síntese do pensamento da época: Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues. Ortiz os considera "precursores das Ciências Sociais brasileiras".

Particularmente acatando a sugestão de Evaldo Cabral de Mello, preferimos, contudo, considerar Joaquim Nabuco como o "pai da Sociologia brasileira" (3), uma vez que é dele toda a reflexão inicial sobre a escravidão negra e seu profundo enraizamento em nossa sociedade. Não valendo a pena discutir-se isso aqui e agora, voltemos à análise do texto de Ortiz. Ele diz:
Ao se referir ao declínio da hegemonia do romantismo de Gonçalves Dias e José de Alencar, que podemos situar em torno de 1870, Sílvio Romero arrola uma lista das teorias que teriam contribuído para a superação do pensamento romântico. Dentre elas, três tiveram um impacto real junto à intelligentsia brasileira: e de uma certa forma delinearam os limites no interior dos quais toda a produção teórica da época se constitui: o positivismo de Comte, o darwinismo social, o evolucionismo de Spencer. Elaboradas na Europa em meados do século XIX, essas teorias, distintas entre si, podem ser consideradas sob um aspecto único: o da evolução histórica dos povos. Na verdade, o evolucionismo se propunha a encontrar um nexo entre as diferentes sociedades humanas ao longo da história; aceitando como postulado que o "simples" (povos primitivos) evolui naturalmente para o mais "complexo" (sociedades ocidentais), procurava-se estabelecer as leis que presidiriam o progresso das civilizações. Do ponto de vista político, tem-se que o evolucionismo vai possibilitar à elite européia uma tomada de consciência de seu poderio que se consolida com a expansão mundial do capitalismo. Sem querer reduzi-lo a urna dimensão exclusiva, pode-se dizer que evolucionismo em parte legitima ideologicamente a posição hegemônica do mundo ocidental. A "superioridade" da civilização européia torna-se assim decorrente das leis naturais que orientariam a história dos povos. A "importação" de uma teoria dessa natureza não deixa de colocar problemas para os intelectuais brasileiros. Como pensar a realidade de uma nação emergente no interior desse quadro? Aceitar as teorias evolucionistas implicava analisar-se a evolução brasileira sob as luzes das interpretações de uma história natural da humanidade; o estágio civilizatório do país se encontrava assim de imediato definido como "inferior" em relação à etapa alcançada pelos países europeus. Torna-se necessário, por isso, explicar o "atraso" brasileiro e apontar para um futuro próximo, ou remoto, a possibilidade de o Brasil se constituir enquanto povo, isto é, como nação. O dilema dos intelectuais desta época é compreender a defasagem entre teoria e realidade, o que se consubstancia na construção de uma identidade nacional. A interpretação do Brasil passa necessariamente por esse caminho, daí a ênfase no estudo do "caráter nacional", o que em última instância se reportava à formação de um Estado nacional. O evolucionismo fornece à intelligentsia brasileira os conceitos para compreensão desta problemática; porém, na medida em que a realidade nacional se diferencia da européia, tem-se que ela adquire no Brasil novos contornos e peculiaridades. A especificidade nacional, isto é, o hiato entre teoria e sociedade, só pode ser compreendido quando combinado a outros conceitos que permitem considerar o porquê do "atraso" do país. Se o evolucionismo torna possível a compreensão mais geral das sociedades humanas, é necessário porém completá-lo com outros argumentos que possibilitem o entendimento da especificidade social. O pensamento brasileiro da época vai encontrar tais argumentos em duas noções particulares: o meio e a raça.
(
Cultura Brasileira e Identidade Nacional, pp. 14,15).
Depois prossegue Ortiz afirmando que meio e raça permearão toda a epistemologia da intelectualidade brasileira de fins do XIX e princípios do XX. Na identificação dos fatores constituintes da formação histórica de nossa sociedade, tais autores empreenderão construções negativistas de nossa realidade social, política e econômica, em vista de encaixá-la nos moldes cientificistas que se lhes serve de arcabouço.
Verá a tríade Euclides-Romero-Nina tudo o que falta na História do Brasil, segundo eles: ESTADO, NAÇÃO, POVO. Análises que se não de todo são comprometidas com pensamentos eurocêntricos da época, resultam numa péssima apreciação de nosso ethos e numa constatação da não existência de uma Identidade Nacional brasileira.

Seria hipócrita de nossa parte, ao sermos introduzidos na escrita de tais autores por Renato Ortiz, Nicolau Sevcenko e Lúcia Lippi Oliveira, não se indignar com as posturas anti-monárquicas e anti-católicas deles. Isto porque tais posturas, se bem que coerentes com a pensée cientifique, eram destoantes numa apreciação imparcial do legado que a Monarquia - tanto a lusitana (1500-1815), quanto a luso-brasileira (1815-1822), mas sobretudo a nacional (1822 em diante) - e a Igreja Católica deixaram ao Brasil.

Afirmar que realidades identitárias nacionais eram no Oitocentos ainda incompletas e lacunares seria bastante pertinente; fazer todavia vista grossa à identificação popular em torno da Realeza e desprezar a religiosidade popular representaram, no mínimo, leviandade e parcialidade nas obras de tais autores.

Aliás, aproveitando o ensejo, pode-se dizer que Ortiz já aponte para a parcialidade da tríade originária quando ressalta a importância da obra de Manuel Bonfim na apreciação do racismo como fator inerente ao pensamento do período. O vanguardismo de Bonfim é considerado relevante para uma melhor historicização das propostas intelectuais no Brasil de fins do Oitocentos. Segundo Ortiz, tal autor teria, com a publicação, em Paris da obra América Latina, Males de Origem, enveredado pela análise científico-social dos países latino-americanos fazendo a analogia com organismos biológicos. Segundo Ortiz, ele espelha-se em Comte, só que de uma forma que os demais pensadores brasileiros jamais o haviam feito. Existiria portanto no Continente males originais de parasitismo, frutos da colonização predatória de portugueses e espanhóis.

Em relação às raças, contudo, diria este autor que o processo de formação da sociedade no Brasil, peculiarmente, teria conseguido renovar a herança trágica do parasitismo colonial, mormente apresentadas como conservantismo de elite e a falta de observação. Vai além na análise da questão racial quando considera que os argumentos de inferioridade da raça negra e da indígena dariam sempre margem à defesa da exploração dos indivíduos dessas raças pela branca.

Ainda assim, Bonfim não diferiria da tríade quando optasse, em coerência ao cientificismo dominante, por considerar que nosso estágio civilizacional era o de atraso. Pensando em Francês, tal qualquer seu par, também esse autor repetirá os preceitos comtianos de civilização, ordem, progresso.

Ressalta ainda Ortiz que a obra de Bonfim é reveladora da angústia causada em nossa intelligentsia pela sempiterna importação de idéias; pela não produção de pensamento nacional. O interessante é que eles mesmos, sem saberem, importavam idéias e, o pior, tentavam adapta-las de forma equívoca, ao nosso país...

Neste ínterim, a própria idéia de República, é-nos grato afirmar, deveria ter sempre sido considerada mais estrangeira que nacional para o caso brasileiro. Voltaremos abaixo a tocar no assunto, quando falarmos do ufanismo.

Retornando à abordagem de Ortiz no que concerne à raça e ao meio, ele coloca que o Brasil seguirá, da década de 1870 até a de 1930, no campo intelectual considerando-se inferior às grandes potências estrangeiras, pela sua constituição histórica: a mestiçagem será, durante todo esse período, vista negativamente por nossos pensadores. Somente com Gilberto Freyre, nos anos 30, haverá positivação da mestiçagem e valorização do elemento negro na sociedade brasileira.

É interessantíssima a perspectiva de Ortiz quanto ao fato de que, mesmo engrandecendo bastante as Ciências Sociais com suas teorias de democracia racial, Freyre, em seu profundo cabedal de conhecimento, tenha servido à manutenção de certa visão elitista da história brasileira, o que resulta em continuidade com análises anteriores da Identidade Nacional brasileira. Diz ele:
Gilberto Freyre representa continuidade, permanência de uma tradição, e não é por acaso que ele vai produzir seus escritos fora desta instituição "moderna" que é a universidade, trabalhando numa organização que segue os moldes dos antigos Institutos Históricos e Geográficos. Não há ruptura entre Sílvio Romero e Gilberto Freyre, mas reinterpretação da mesma problemática proposta pelos intelectuais do final do século. Arthur Ramos dizia que para se ler Nina Rodrigues bastava trocar o conceito de raça pelo de cultura. A afirmação pude talvez parecer simplista mas creio que encerra uma boa dose de veracidade. Gilberto Freyre reedita a temática racial, para constituí-la, como se fazia no passado, em objeto privilegiado de estudo, em chave para a compreensão do Brasil. Porém, ele não vai mais considerá-la em termos raciais, como faziam Euclides da Cunha ou Nina Rodrigues; na época em que escreve, as teorias antropológicas que desfrutam do estatuto científico são outras, por isso ele se volta para o culturalismo de Boas. A passagem do conceito de raça para o de cultura elimina uma série de dificuldades colocadas anteriormente a respeito da herança atávica do mestiço. (...) Gilberto Freyre transforma a negatividade do mestiço em positividade, o que permite completar definitivamente os contornos de uma identidade que há muito vinha sendo desenhada. Só que as condições sociais eram agora diferentes, a sociedade brasileira já não mais se encontrava num período de transição, os rumos do desenvolvimento eram claros e até um novo Estado procurava orientar essas mudanças. O mito das três raças torna-se então plausível e pode se atualizar como ritual. A ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada nas ambiguidades das teorias racistas, ao ser reelaborada pode difundir-se socialmente e se tornar senso comum, ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou nos grandes eventos como o carnaval e o futebol. O que era mestiço torna-se nacional.
Eu havia afirmado anteriormente que a obra de Gilberto Freyre atendia a uma "demanda social" determinada. (...)
(..) O que me interessa discutir não é o trabalho de Gilberto Freyre como um todo, que é certamente multifacetado - por exemplo, sua aproximação antropológica da história, sua tentativa de analisar historicamente a sexualidade, etc. E o tema da cultura brasileira, da mestiçagem, que é relevante para a discussão. Neste sentido cabe entendermos como a continuidade do pensamento tradicional se inscreve na descontinuidade dos anos 30. Existe hoje um certo tabu em torno de Gilberto Freyre que dificulta a apreciação de seus escritos. Freqüentemente a argumentação se encerra num circulo vicioso. Ele é um autor genial porque escreveu
Casa Grande & Senzala, e vice-versa: trata-se de um grande livro porque foi escrito por Gilberto Freyre. Colocar a questão da continuidade do passado no momento de reorganização do Estado brasileiro é, na verdade, procurar fora da obra as razões do sucesso do livro. Muito embora existam contradições internas entre a estrutura da obra o Estado centralizador (abordaremos este tema no capítulo sobre Estado autoritário e Cultura), o livro possui uma qualidade fundamental, ele une a todos: casa-grande e senzala, sobrados e mucambos. Por isso ele é saudado por todas as correntes políticas, da direita à esquerda. O livro possibilita a afirmação inequívoca de um povo que se debatia ainda com as ambiguidades de sua própria definição. Ele se transforma em unicidade nacional. Ao retrabalhar a problemática da cultura brasileira, Gilberto Freyre oferece ao brasileiro uma carteira de identidade. A ambigüidade da identidade do Ser nacional forjada pelos intelectuais do século XIX não podia resistir mais tempo. Ela havia se tornado incompatível com o processo de desenvolvimento econômico e social do país. Basta lembrarmos que nos anos 30 procura-se transformar radical-mente o conceito de homem brasileiro. Qualidades como "preguiça", 'indolência", consideradas como inerentes à raça mestiça, são substituidas por uma ideologia do trabalho. Os cientistas políticos mostram, por exemplo, como esta ideologia se constituiu na pedra de toque do Estado Novo. O mesmo processo pode ser identificado na ação cultural do governo de Vargas, por exemplo na ação que se estabelece em direção à música popular. E justamente nesse período que a música da malandragem é combatida em nome de uma ideologia que propõe erigir o trabalho como valor fundamental da sociedade brasileira. O que se assiste neste momento é na verdade uma transformação cultural profunda, pois se busca adequar as mentalidades às novas exigências de um Brasil "moderno". Ao mulato de Aluísio de Azevedo se contrapõe a positividade do mestiço, que diferentes setores sociais procuram orientar para uma ação racional mais compatível com a organização social como um todo. Não tenho dúvidas de que esta ideologia do trabalho se encontra ausente do texto de Gilberto Freyre. O que quero mostrar é que a operação Casa Grande & Senzala possibilita enfrentar a questão nacional em novos termos. Dai eu ter afirmado que o sucesso da obra se encontra também fora dela. Ao permitir ao brasileiro se pensar positivamente a si próprio, tem-se que as oposições entre um pensador tradicional e um Estado novo não são imediatamente reconhecidas corno tal, e são harmonizadas na unicidade da identidade nacional.
(
Idem, pp. 40,41 e 42).

Enfim, Ortiz teoriza que servindo ou não de continuidade na percepção do problema racial brasileiro enquanto parte importante da Identidade Nacional, o mito democrático-racial contém uma imprescindível proposta harmonizadora da sociedade, o que deve ser constatado em sua análise como valor positivo:
O mito das três raças, ao se difundir na sociedade, permite aos indivíduos, das diferentes classes sociais e dos diversos grupos de cor, interpretar, dentro do padrão proposto, as relações raciais que eles próprios vivenciam. Isto coloca um problema interessante para os movimentos negros. Na medida em que a sociedade se apropria das manifestações de cor e as integra no discurso unívoco do nacional, tem-se que elas perdem sua especificidade. Tem-se insistido muito sobre a dificuldade de se definir o que é o negro no Brasil. O impasse não é a meu ver simplesmente teórico, ele reflete as ambigüidades da própria sociedade brasileira. A construção de uma identidade nacional mestiça deixa ainda mais difícil o discernimento entre as fronteiras de cor. Ao se promover o samba ao titulo de nacional, o que efetivamente ele é hoje, esvazia-se sua especificidade de origem, que era ser uma música negra. Quando os movimentos negros recuperam o soul para afirmar a sua negritude o que se está fazendo é uma importação de matéria sim bólica que é ressignificada no contexto brasileiro. E bem verdade que o soul não supera as contradiçôes de classe ou entre países centrais e periféricos, mas eu diria que de uma certa forma ele "serve" melhor para exprimir a angústia e a opressão racial do que o samba, que se tornou nacional. O problema com que os movimentos negros se deparam é de como retomar as diversas manifestações culturais de cor, que já vêm muitas vezes marcadas com o signo da brasilidade. Uma vez que os próprios negros também se definem como brasileiros, tem-se que o processo de ressignificação cultural fica problemático. O mito das três raças é neste sentido exemplar, ele não somente encobre os conflitos raciais como possibilita a todos de se reconhecerem como nacionais.
(
Ibidem, pp. 43 e 44).

5. A REPÚBLICA E A IDENTIDADE NACIONAL

As contribuições que o historiador e cientista político José Murilo de Carvalho têm fornecido à Literatura brasileira com as pesquisas em torno da questão da República são de fato de tal monta que se tornará difícil ao leitor ou ao profissional de História das próximas gerações não se referir a elas num estudo crítico da transição da Monarquia para a República em fins do XIX.

Suas propostas de análise concentram-se em ver que a nossa República é marcada pelo pecado original da impopularidade, além de ser - ou por isso mesmo - inconclusa e inóspita.

Tanto em Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi (1987), quanto em Formação das Almas: o Imaginário da República no Brasil (1991), o autor trabalha com as idéias de que a República apresentou-se de tal forma artificial em sua chegada que se vê em dificuldades até hoje para afirmar-se como forma de governo popular e autenticamente partícipe da Identidade Nacional.

Na primeira obra, que visava elucidar melhor a obscuridade do golpe de 15 de Novembro e suas conseqüências mais imediatas no cotidiano da Cidade do Rio de Janeiro, Carvalho percebe que as autoridades republicanas programaticamente esvaziaram a Cidade - que sintetiza o País - das perspectivações de cidadania e ampliação de direitos civis e políticos. Diz ele:
(...) A cidade, a vida e os valores urbanos tenderiam a favorecer a prática republicana, que, por sua vez, se caracterizaria pela ampliação da cidadania. A República, mesmo no Brasil, apresentou-se como o regime da liberdade e da igualdade, como o regime do governo popular. A cidade fora o berço da cidadania moderna e, no Brasil, o Rio de Janeiro, maior centro urbano, apresentava as melhores condições de fornecer o caldo de cultura das liberdades civis, bases necessárias para o crescimento da participação política.
Encontramos realidade diferente. Nossa República, passado o momento inicial de esperança de expansão democrática, consolidou-se sobre um mínimo de participação eleitoral, sobre a exclusão do movimento popular no governo. Consolidou-se sobre a vitória da ideologia liberal pré-democrática, darwinista, reforçadora do poder oligárquico. As propostas alternativas de organização do poder, a do republicanismo radical, a do socialismo e mesmo a do positivismo, derrotadas, foram postas de lado. A cidade do Rio de Janeiro, por sua vez, não apresentava as características de cidade burguesa onde se desenvolveu a democracia moderna. O peso das tradições escravista e colonial obstruía o desenvolvimento das liberdades civis, ao mesmo tempo em que viciava as relações dos citadinos com o governo. Era uma cidade de comerciantes, burocratas e de vasto proletariado, socialmente hierarquizada, pouco tocada seja pelos aspectos libertários do liberalismo, seja pela disciplina do trabalho industrial. Uma cidade em que desmoronava a ordem antiga sem que se implantasse a nova ordem burguesa, o que equivale a outra maneira de afirmar a inexistência das condições para a cidadania política. (...)

Na República que não era, a cidade não tinha cidadãos. Para a grande maioria dos fluminenses, o poder permanecia fora do alcance, do controle e mesmo da compreensão,. Os acontecimentos políticos eram representações em que o povo comum aparecia como espectador ou, no máximo, como figurante. Ele se relacionava com o governo seja pela indiferença aos mecanismos oficiais de participação, seja pelo pragmatismo na busca de empregos e favores, seja, enfim, pela reação violenta quando se julgava atingidos em direitos e valores por ele considerados extravasantes da competência do poder. Em qualquer desses casos, uma visão entre cínica e irônica do poder, a ausência de qualquer sentimento de lealdade, o outro lado da moeda da inexistência de direitos., a lealdade era possível em relação ao paternalismo monárquico, mais de acordo com os valores da incorporação, não em relação ao liberalismo republicano.

Impedida de ser república, a cidade mantinha suas repúblicas, seus módulos de participação social, nos bairros, nas associações, nas irmandades, nos grupos étnicos, nas igrejas, nas festas religiosas e profanas e mesmo nos cortiços e nas maltas de capoeiras. Estruturas comunitárias não se encaixavam no modelo contratual do liberalismo dominante na política. Ironicamente, foi da evolução destas repúblicas, algumas inicialmente discriminadas, se não perseguidas, que se foi construindo a identidade coletiva da cidade. Foi nelas que se aproximaram povo e classe média, foi nelas que se desenhou o rosto real da cidade, longe das preocupações com a imagem que se devia apresentar à Europa. Foi o futebol, o samba e o carnaval que deram ao Rio de Janeiro uma comunidade de sentimentos, por cima e além das grandes diferenças sociais que sobreviveram e ainda sobrevivem. Negros livres, ex-escravos, imigrantes, proletários e classe média encontraram aos poucos um terreno comum de auto-reconhecimento que não lhes era propiciado pela política. (...)

Mas, ainda hoje, tempo de Nova República, livre da tarefa de representar o país e tendo conquistado o direito de eleger seus governantes, a cidade não consegue transformar sua capacidade de participação comunitária em capacidade de participação cívica. A atitude popular perante o poder ainda oscila entre a indiferença, o pragmatismo fisiológico e a reação violenta. O conluio da ordem com a desordem, da lei com a transgressão, outrora tipificado no uso de capoeiras nas eleições, continua em plena vigência através do acordo tácito entre autoridades e banqueiros do jogo do bicho. A Cidade, a República e a Cidadania continuam dissociadas, quando muito perversamente entrelaçadas. O esforço de associá-las segundo o modelo ocidental tem-se revelado tarefa de Sísifo. Já é tempo talvez de se fazer a pergunta se o caminho para a cidadania não deve ser outro. Se a República não republicanizou a cidade, cabe perguntar se não seria o momento de a cidade redefinir a República segundo o modelo participativo que lhe é próprio, gerando um novo cidadão mais próximo do citadino.
(4)
Nesse sentido, é interessante aludir aqui às obras de autores da época que opuseram-se ferrenhamente à implantação do novo regime e que, em suas teorizações, já anteviam os males que daquela forma de governo ilegitimamente alçada ao Estado Nacional, poderiam permear a realidade social e política dali resultante.

Referimo-nos evidentemente aos ufanistas. Lúcia Lippi Oliveira, em seu A Questão Nacional na 1ª República, analisa a complexidade das datações históricas de nossa percepção enquanto NAÇÃO.

Em Desde quando somos uma nação? (3º cap.), a autora defende que há uma infinidade de posturas intelectuais divergentes na datação do princípio de sentimentos nacionais na Literatura brasileira. Ela particularmente opta por ver na Geração de 1870 os mais coesos postuladores de uma nacionalidade, que remetesse de imediato às idéias de modernidade, progresso, civilização. Ora, em sendo o próprio atributo de NAÇÃO visto na História Moderna e Contemporânea como particular às noções de Estado Nacional, por herança dos séculos XVI, XVII e XVIII europeus, tem-se que somente os mosqueteiros intelectuais vieram a compor in concreto um pensamento nacional brasileiro.

No capítulo seguinte, a autora salienta uma vertente do pensamento ufanista brasileiro das décadas de 1890 e 1900: o ufanismo monarquista. Uma das conseqüências mais aparentes da ascensão republicana foi o engajamento político e literário dos intelectuais monarquistas na frente de batalha ao stablishment republicano. Diz ela:
No início da República o otimismo quanto às qualidades da terra brasileira, associado às críticas à vida política republicana era representado pelos civis monarquistas. Eles condenavam a presença e a atuação dos militares no novo governo. A face militarista do regime republicano recebia críticas ferrenhas de Eduardo Prado, de Afonso Celso e mesmo de figuras como Joaquim Nabuco, que entre outras coisas acusava a Constituição brasileira de 1891 de ser uma cópia da Constituição americana.
Eduardo Prado em Fastos da ditadura militar no Brasil (1902), reuniu artigos publicados entre dezembro de 1889 e junho de 1890 na Revista de Portugal, periódico dirigido por Eça de Queiroz. Sob o pseudônimo de Frederico S., Eduardo Prado denunciava as práticas da ditadura militar republicana que se opunham às teorias e práticas liberais vigentes no Império. Para o autor, o Império encarnava o liberalismo, enquanto a República significava a introdução do caudilhismo na política brasileira. Além disso, a República trouxera consigo a ameaça de dividir o Brasil em vários países, rompendo a unidade conseguida pelo Império.
Entre os civis opositores do governo militar de Floriano encontrava-se também Rui Barbosa, que fora ministro da Fazenda do primeiro governo republicano. Advogado de defesa dos insurretos da Revolta da Armada, Rui foi perseguido pelo governo de Floriano, acabando por partir para o exílio na Europa.
(
A Questão Nacional na 1ª República, p. 103).
A seguir, ela coloca que Eduardo Prado fará aparecer em 1893 o seu A ilusão americana, em que identificará amplamente a República no Brasil a um projeto de imitação e cópia, constituído numa verdadeira norte-americanização de nossa cultura nacional, consideravelmente destoante da do gigante do Norte.
O livro de Eduardo Prado A ilusão americana, escrito em 1893, trata do período histórico que se estende de 1823, ano em que foi elaborada a doutrina Monroe, até a época chamada de política do big-stick patrocinado pelo Secretário de Estado James Biaine, quando o expansionismo norte-americano inaugura sua presença armada na América Central. A primeira edição da obra foi confiscada pelo governo. Não foi o conteúdo antiamericano do livro o responsável por sua apreensão, mas sim o fato de ter sido lançado durante o estado de sítio decretado por Floriano devido à eclosão da Revolta da Armada e da Revolução Federalista. Esses movimentos, marcados pelo revanchismo monarquista, criavam um clima desfavorável para a circulação de idéias e obras comprometidas com a Monarquia.
A ilusão americana condena a forma republicana, apresentando-a como cópia do modelo político norte-americano. A crítica à República aparece já no prefácio, no qual Eduardo Prado se refere ao novo regime como uma "dolorosa provação que (...) tanto tem amargurado a pátria brasileira". Mais adiante, reafirma essa posição quando diz que ''o governo republicano do Brasil está tristemente predestinado a reagir sempre contra a civilização". (...)
Os países da América espanhola, ao adotar o modelo norte-americano, renegam suas tradições. ''O Brasil, mais feliz, instintivamente obedeceu à grande lei de que as nações devem reformar-se dentro de si mesmas, como todos os organismos vivos, com a própria substância''. Em 1889, com o advento da República, cometeu-se o mesmo erro dos países hispano-americanos: foi imposto um modelo que acarretou a perda imediata da liberdade.
(
Idem, p. 105).

Por fim, Lúcia Lippi ressalta que o choque de posicionamentos jornalísticos e literários no Brasil de 10 e 20 dá-se entre dois principais nacionalismos: o jacobino e o ufanista. O primeiro de cunho mais militar, republicano e pró-Estados Unidos; o segundo, mais civil, monarquista e pró-Inglaterra.

Ela conclui afirmando que heranças teóricas desses pensamentos perpassarão nosso pensamento nacional no pós-guerra.

6. CONCLUSÃO

Dentro do que foi proposto, cremos ter conseguido apontar vários modos de apreciação que, ainda inacabados e prescindindo de análise metodológica mais séria e acurada, ficam como indícios de trazer à luz da bibliografia existente acerca de Identidade Nacional brasileira teorias melhor esboçadas sobre o monarquismo e o republicanismo em nossa pátria; sobre a persistência de valores tradicionais monárquicos em nossa sociedade; sobre a existência de algum resquício de identificação nacional dos brasileiros - ainda que inconscientemente - com sua Realeza, etc.

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NOTAS
1) São parcos, em nossa opinião, estudos sócio-genealógicos que indiquem a importância histórica do fato de o Príncipe Herdeiro português ter sido, desde 1645, titulado Príncipe do Brasil. Em similitude com as Realezas espanhola, inglesa e francesa, onde os Herdeiros eram - e ainda são - respectivamente o Príncipe de Astúrias, o Príncipe de Gales e o Delfim de Viennois, o Rei D. João IV o Restaurador decretou que os primogênitos reais fossem chamados de PRÍNCIPES DO BRASIL, muito provavelmente numa alusão à crença de continuidade histórica da grandeza lusitana via Brasil. (voltar)
2) Vários autores aludem ao nosso reconhecimento da Independência por parte de Portugal como cessão de direitos. Interessante, no contexto aqui apontado, é notar a influência que nisso teve a diplomacia austríaca. Cf. RAMIREZ, Ezekiel Stanley (trad. Américo Jacobina Lacombe): As relações entre a Áustria e o Brasil, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1968. (voltar)

3) Cf. CABRAL DE MELLO, Evaldo: Prefácio IN Minha Formação, de Joaquim Nabuco, Topbooks, Rio de Janeiro, 1999. (voltar)

4) Cf. Conclusão IN Os Bestializados, o Rio de Janeiro e a República que não foi, Ed. Cia. das Letras, São Paulo, 1999 (3ª edição e 6ª reimpressão). (voltar)