sábado, 26 de julho de 2008

Helio Vianna e sua História Diplomática do Brasil



Bruno de Cerqueira


O Prof. Helio Vianna (*1908 †1972), primeiro catedrático de História do Brasil na antiga Universidade do Brasil, o que equivaleria a considerá-lo o primeiro historiador universitário do país, era bacharel em Direito pela Faculdade do Rio de Janeiro, graduado em 1932. Quatorze anos mais tarde, também receberia da Faculdade Nacional de Filosofia o bacharelado.

Nascido em “tradicional família mineira” e já na nova capital (Belo Horizonte), Helio Vianna se inscreve no rol dos antigos historiadores brasileiros que faziam da crônica ou da histoire évenementielle — terminologia dos historiadores da chamada Écolle des Annales (anos 1930, 40, 50 e 60) para classificar uma história relativamente desligada de funções problematizadoras — seu instrumental para transmitir o passado ao presente.

A História Diplomática do Brasil, de Helio Vianna, veio a lume em 1958, editada pela Biblioteca do Exército e impressa pela Companhia Melhoramentos de São Paulo. É livro raro hoje em dia, pois não possuiu, ao que parece, outras edições.

Na resenha que escreve para o livro, em 2004, o Prof. Paulo Roberto de Almeida  considera que o texto de Vianna é fruto do Brasil que ainda falava latim, ou seja, do bacharelismo. Certamente que é. Contudo, aqui estamos para tentar enxergar na História Diplomática do Brasil, de Helio Vianna, um dos textos fundadores do estudo de nossa edificação enquanto Estado Colonial luso-americano e, posteriormente, Estado Nacional brasileiro, em paradigmas internacionais.

Na página introdutória de número 5, o autor — quem sabe para já se proteger de futuras críticas concernentes ao estilo vieux-façon ou démodé (?) — informa:

Tendo dado, na Escola de Estado-Maior do Exército, em 1947, um curso de História das Fronteiras do Brasil, foi ele publicado, no ano seguinte, pela Biblioteca Militar, do Ministério da Guerra, como volumes 132/133 de sua coleção. Em 1950 dei, para aperfeiçoamento de diplomatas, no Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores, outro curso, ligeiramente diverso do anterior, de História Diplomática do Brasil. Achando-se completamente esgotada aquela obra de 1948, propuseram-me as Edições Melhoramentos sua nova publicação.

Preferi, porém, rever e atualizar os dois citados trabalhos, fundindo-os em um só, com aproveitamento, também, das aulas de História do Brasil, desde 1939 a meu cargo, da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. O resultado é o presente volume, que ofereço aos estudiosos da política internacional brasileira.

Em outras palavras, está dito que se trata de manual. Mesmo que de muito boa qualidade, contendo uma riqueza de dados factuais notável. Portanto, está correto o internacionalista P. R. de Almeida ao descrever a obra como sendo

híbrida, pois que retoma trechos inteiros do História das Fronteiras, logrando contudo uma certa unidade temática e um tratamento linear sobre os principais eventos das relações internacionais do Brasil (...). Nesse particular, Hélio Vianna preservou uma tradição que vinha da primeira metade do século e que já estava francamente em decadência a partir dos anos 50, ou seja, a descrição geralmente apologética da política externa oficial, com uma justificação integral das ações dos mandatários de cada momento nos diversos conflitos regionais ou inter-estatais ou em defesa das ‘fronteiras ameaçadas’ pelos governos e regimes vizinhos.”

À crítica seguinte, lançada pelo diplomata-sociólogo, não aderimos, ao menos integralmente: a de que a HDB, de Helio Vianna, seja um corolário ou um argumentário de todas as “razões de Estado” que a metrópole lusitana e, depois, o Estado Imperial brasileiro lançaram mão para possuir, desbravar, ocupar — civilizar e sifilizar, no jargão freyreano — as terras americanas em que hoje nos achamos. Ora, poderia o autor, dando curso de instrução aos primeiros membros do recém-criado IRBr agir de outra forma? Poderia ele engendrar toda uma rebuscada análise crítica sobre as formas pelas quais nossas fronteiras foram sendo estabelecidas, fazendo tábula rasa das investidas ferozes que os espanhóis, franceses, ingleses e holandeses perpetraram durante séculos e séculos? Poderia Vianna aduzir aos processos históricos de construção dessa territorialidade embrionária dos brasileiros como outra realidade, senão a de “mocinhos e bandidos”, sendo os primeiros todos os agentes do Estado, e os segundos, todos os inimigos dele? Porque é fato que Vianna, ao se posicionar como agente do Estado brasileiro da década de 1950, não perde de vista que muitos foram os “brasileiros” do passado, mormente os bandeirantes, que agiram contra os ditames de Portugal ou os que, na era imperial, por separatismo, fizeram o mesmo com a Corte do Rio de Janeiro.

Ao elencar os posicionamentos nocivos dos anti-Estado, Vianna não está, como aponta Almeida, sendo um direitista radical. De forma alguma! Ele está sendo um cioso servidor  público do Estado Brasileiro... Quanto ao conservadorismo e patriotismo do autor, não se discute.

Além disso, engana-se quem vê no texto de Vianna apreciações superficiais de todas as temáticas que aborda. Por uma evidente opção de síntese — tratou-se de resumir em 210 páginas os 450 anos de nossa história... —, ele se via obrigado a reduzir os itens a examinar, mas isso não o eximia de aportar comentários acurados, como veremos.

A SANTA SÉ E AS ORIGENS DO BRASIL

Interessantemente, começa Vianna nossa história diplomática narrando todos os inúmeros acordos entre as realezas de Portugal, Castela e Aragão e o Papado. Conforme ressalta Vianna, em pleno século XV, ainda era à figura do Sucessor de São Pedro que se subordinavam todos os príncipes católicos do mundo.

Vianna historia as bulas papais que deram conta da autorização do Estado Português a iniciar suas atividades marítimas:

•     Sane Charissimus (1418). Martinho V concede a D. João I o direito de conquista do Marrocos, qualificando de “cruzada” a empreitada;
•     Rex Regum (1436). Eugênio IV dá a D. Duarte I e seus sucessores os direitos sobre todas as terras que vierem a conquistar dos infiéis;
•     Etsi Suscepti (1442). O mesmo Papa concede, especificamente ao Infante D. Henrique o Navegador, através da ordem onde era o grão-mestre — Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo ou, simplesmente, Ordem de Cristo, antiga rama portuguesa dos templários — o direito de conquistar e povoar todas as ilhas ainda não tomadas. Daí prossegue a colonização de Madeira, Açores, Porto Santo e Cabo Verde;
•     Romanus Pontifex (1454). Nicolau V concede à Ordem de Cristo a jurisdição espiritual de todas as terras que vierem a submeter do Cabo Não até aos “Indos”;
•     Inter Coetera (1456). Calisto III confirma a bula anterior, citando expressamente as ilhas do Oceano, os Cabos Bojador e Não, a costa da Guiné, chegando às Índias;
•     Orthodoxae fidei (1486). Inocêncio VIII aprova e enaltece a empresa marítima dos descobrimentos portugueses.

Ocorre que os Papas Xisto IV e Inocêncio VIII, conforme salienta Vianna, não eram amigos de D. Fernando de Aragão, também rei da Sicília e concorrente dos Estados Pontifícios na administração do sul da bota italiana... Por mais piedosa que fosse a esposa do monarca aragonês, D. Isabel de Castela, as relações entre a Santa Sé e a futura monarquia espanhola unificada eram tortuosas. Até quando os “Reis Católicos” conseguiram indicar para a sucessão do Papa Inocêncio o Cardeal Rodrigo Bórgia, cortesão de D. Fernando. Com a eleição dele como Papa Alexandre VI, em 1492, todas as portas se abriam ao colonialismo espanhol... Dado que na mesma época Colombo aportava no continente americano, é fácil imaginar qual o vulto das altercações entre portugueses e espanhóis nos próximos séculos...

Daí em diante Helio Vianna começa a narrar a interessantíssima história dos detalhes das negociações diplomáticas intentadas pelas Cortes de Lisboa e Madrid com o Vaticano. São idas e vindas sem cessar, ora proporcionando garantia de direitos à realeza lusitana, ora à espanhola.

É célebre a “bula da partição”, de novo denominada Inter Coetera, de Alexandre VI, assinada em 4 de maio de 1493, mas expedida da Câmara Apostólica a 28 de junho, onde o Soberano Pontífice estabelece as novas divisões do mundo conhecido e a conhecer, entre portugueses e espanhóis, para o bem da Cristandade... Desta feita, o papa faz rearrumações, para evitar que as concessões de seus antecessores aos monarcas de Portugal sobrepujem às que ele quer fazer ao seu torrão natal.

Relativamente cômico é aos olhares hodiernos o que sucede então. A Santa Sé designa, pela nova bula, que “ficava concedido aos Reis Fernando, Isabel e aos seus sucessores, o domínio sobre todas as ilhas ou terras firmes, descobertas ou por descobrir, que ficassem além de um meridiano que passasse a cem léguas a oeste de qualquer das ilhas dos Açores e Cabo Verde”... Conforme alude Vianna, já Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro e autor da História Geral do Brasil (1854), considerava as bulas de Alexandre VI e suas conseqüências verdadeiramente estapafúrdias...

O resultado dos dissídios entre Portugal e Espanha é o celebérrimo Tratado de Tordesilhas que, ainda hoje, apreendemos nos bancos escolares. Em 7 de junho de 1494, assina-se naquela comunidade castelhana a Capitulação da Partição do Mar Oceano, seu nome oficial. O acordo, cheio de incongruências latitudinais e longitudinais, por não estabelecer de qual ilha do arquipélago de Cabo Verde deveria se fazer o marco, será, contudo, “até 1750, quando foi revogado pelo Tratado de Madrid (...) a peça mais importante de nossa história diplomática” .

Após firmado, Tordesilhas será, literalmente, divisor de águas (e terras) entre as duas monarquias ibéricas. A seguir, Helio Vianna lista todas as contendas que se vão estabelecendo entre elas, até que futuros tratados dessem conta de solucioná-las.

A POLÍTICA EXTERNA DOS ÚLTIMOS AVIZ

No capítulo II de HDB, Vianna se preocupa em demonstrar a ação colonizadora e civilizatória de D. Manuel I, D. João III, D. Sebastião e (Cardeal) D. Henrique para com o Brasil em formação. Esses reis portugueses, temerosos das incursões francesas, tentam, a maior parte das vezes sem sucesso, que seus primos de França impeçam a vinda dos entrelopos. Entre 1516-19 e 1526-28, as chamadas expedições guarda-costas deram cabo de centenas de corsários gauleses. Por fim, como diz Vianna, na iminência de que somente com a colonização efetiva dos litorais e interiores Portugal poderia rechaçar os estrangeiros, arma-se a expedição de Martim Afonso de Sousa em fins de 1530.

Vianna detalha os dois anos da expedição de Martim Afonso de Sousa, chegando a comentar a percepção de Varnhagen de que o militar teria demarcado nossos limites litorâneos “de Pernambuco até o Rio da Prata”, com o objetivo de iniciar o processo de concessão das terras a colonizar. Contudo, adianta Vianna, o Rei “corrigiu o engano, ao fazer as doações de 1534/1536, situando-as (...) na costa entre Maranhão e Santa Catarina, dentro, portanto, dos limites estabelecidos na Capitulação do Mar Oceano”...

Ao adentrar na temática especialíssima das Capitanias Hereditárias, nosso autor se empolga. Visivelmente querendo combater uma historiografia já então existente no Brasil dos anos 1930/40/50, que negava às capitanias hereditárias qualquer sucesso na empreitada colonial , Vianna aponta as especificidades da instituição régia portuguesa, que não proporcionava vínculos feudais da terra com o donatário. Ele assegura:

O resultado da aplicação desse regime, começado por D. Manuel I com a doação da Ilha de São João ou Fernando de Noronha, em 1504, ao armador desse nome, e incentivado por D. João III, em 1534/1536, com a criação de mais quatorze capitanias hereditárias — não foi o completo malogro que apenas com duas exceções tem sido alegado. Além dessas quinze, mais três pequenas donatarias foram criadas, ainda no século XVI, perfazendo o total de dezoito capitanias do gênero.

Se é verdade que alguns lotes não tiveram nem mesmo um começo de povoamento, outros, em maior numero, receberam os esforços de seus donatários, fundando-se povoações e iniciando-se plantações, que, mesmo precárias, eficazmente contribuíram para a obtenção do primeiro objetivo em vista: impedir o estabelecimento de estrangeiros em zonas anteriormente abandonadas.

Para comprovar a asserção, basta observar que, nos séculos XVI e XVII, somente nas regiões onde os donatários não se haviam localizado, como no Rio de Janeiro, Sergipe, Paraíba, Rio Grande, Ceará e Maranhão, puderam os franceses, aliados aos respectivos indígenas, opor resistência, durante algum tempo, aos conquistadores portugueses e brasileiros. Ao contrário, em todos os pontos em que se firmaram nossas primeiras vilas, mesmo pequenas e fracas, foram rechaçados os corsários e piratas (...). Não é possível fazer maior elogio à idéia de criação (...) do primeiro sistema administrativo implantado no Brasil.

Eficientemente contribuindo para a defesa do território hoje brasileiro (...), o regime das capitanias hereditárias não deve ser julgado somente sob o ponto de vista de suas falhas, mas pelos benefícios que sem dúvida facultou ao Brasil, nos dois séculos e meio em que foi vigente entre nós

Com o estabelecimento do Governo-Geral do Brasil, em Salvador (1549), Vianna diz que as empresas coloniais de conquista foram facilitadas: em 1565, o Rio de Janeiro, em 1585 a Paraíba, em 1589, Sergipe e em 1597, o Rio Grande do Norte.

O problema maior estava ao sul, justamente em decorrência da competição luso-espanhola — o autor a retoma em todo o livro, às vezes desnecessariamente minuciando-a — e das sucessivas utilizações dos solos por portugueses e espanhóis, náufragos, conquistadores ou religiosos.

A UNIÃO DAS COROAS IBÉRICAS E O BRASIL

Como conseqüência do desaparecimento do jovem e destemido D. Sebastião em Alcácer-Quibir (1578) e a ascensão de seu idoso tio-avô ao trono, Cardeal D. Henrique, a extinção da Casa de Aviz se afigura próxima. Após esmiuçar a questão dinástico-sucessória lusitana , Vianna passa a analisar as “conseqüências imediatas da união das coroas peninsulares”, sobretudo no que tange ao Brasil...

Pelo estatuto extremamente consciencioso de D. Felipe II, Portugal não foi anexado à Espanha, em 1580 . Daí que, conforme apontam Vianna e dezenas de outros autores, as colônias não se tenham fundido. Em compensação, a nova situação metropolitana evidentemente gerava conflitos e “inversões” coloniais. Di-lo:

(...) verificou-se, por motivo dessa união pessoal, verdadeira suspensão temporária dos efeitos do Tratado de Tordesilhas, pela natural tolerância com que as autoridades encaravam as infrações no que fora convencionado quando as duas monarquias peninsulares eram concorrentes (...). Assim, enquanto muitos espanhóis com facilidade se estabeleciam em povoações brasileiras, o que antes lhes era defeso, por seu lado muitos luso-brasileiros, em entradas e bandeiras, também penetravam em regiões anteriormente atribuídas à Espanha, com isso obtendo títulos de prioridade e posse que seriam respeitados pela diplomacia posterior. Atingiam, dessa forma, as futuras fronteiras terrestres do Brasil.

Após narrar as conquistas territoriais do Ceará (c. 1611), Maranhão (c. 1615), Grão-Pará (c. 1616) e Amazônia (c. 1639), ele passa à apreciação da “conquista do Sul e Sudoeste”. Refere-se à complexa história de beligerância entre índios, paulistas, jesuítas e espanhóis e conclui afirmando que “travou-se, assim, em plena vigência da união das monarquias ibéricas, o primeiro conflito de fronteiras terrestres entre portugueses e espanhóis na América”.

A RESTAURAÇÃO DE 1640 E SUAS CONSEQÜÊNCIAS

No cap. IV de HDB, Vianna explica como se deu a ascensão da Casa Ducal de Bragança (ramo bastardo da Casa de Aviz), ao trono real português em 1640 e de que forma, internacionalmente, essa nova realidade histórica foi apreciada pelos atores. Em Westfália, a nova ordem não reconheceu a independência de Portugal da Espanha...

Pacificando-se com os comerciantes das Províncias Unidas (neerlandeses), em 1661, os portugueses se voltam para os ingleses, na expectativa de auxílio portentoso na lida com os espanhóis, resolutos ao não-reconhecimento da independência. Em 1661/1662, o novo monarca britânico, Charles II, desposa D. Catarina de Bragança (*1638 †1705), filha de D. João IV o Restaurador e da Rainha regente D. Luiza e irmã de D. Afonso VI. A união estabelece um ajuste em que Portugal cede Bombaim e Tanger aos ingleses e estes se comprometem a conseguir a paz com os espanhóis, o que de fato se obtém, no Tratado de 1668.

Todo o término do cap. IV de HDB é dedicado à apreciação da problemática da Colônia do Sacramento, tema que aliás ocupa dezenas de páginas na obra. Em 7 de maio de 1681, Espanha aceita novas propostas de Portugal na resolução dos conflitos e, no início de 1683, o Governador do Rio de Janeiro, Duarte Teixeira Chaves, reempossa a região.

AINDA A EXPANSÃO E AS FRONTEIRAS DO BRASIL

No cap. V, Helio Vianna retoma a temática da expansão luso-brasileira pela que seria nossa Região Norte, narrando as concessões das Casas de Habsburgo e de Bragança aos desbravadores: de 1630 em diante, na Capitania do Cabo do Norte, ele enaltece a figura do sertanista Bento Maciel Parente e sua linhagem. Nos limites com a Guiana dos franceses, os dissídios serão constantes, ao longo dos séculos, chegando ao Novecentos...

Após a Guerra de Sucessão na Espanha, a Casa de Bourbon é chamada a reinar e isso traz conseqüências positivas ao Brasil, indica Vianna. Logo em 1701, D. Felipe V renuncia por completo às pretensões espanholas na Colônia do Santíssimo Sacramento. A formalização do término das disputas se dá com os dois Tratados de Utrecht: em 1713, Portugal e França definem fronteiras para o Amapá e em 1715, Portugal e Espanha entabulam novas díades na Colônia do Sacramento, em benefício luso.

No sexto cap. de HDB, continua Vianna elucidando as animosidades entre administradores luso-brasileiros e hispano-americanos na Região do Prata. Em 1724, os hispanos se estabeleceram em Montevidéu, a fim de assegurar a futura colonização de toda

a margem esquerda do Rio da Prata, criando efetivamente a Banda Oriental. Nasceu daí o direito que depois lhes reconheceram (...): embora fosse lusitana a precedência, no descobrimento de 1513, como na fundação de 1680, espanhol foi o povoamento de grande parte da região, e não de simples fortaleza ou entreposto (...). Esta é, em suma, a razão de um Uruguai independente, e não de uma Província cisplatina aportuguesada ou abrasileirada: enquanto a Colônia do Sacramento daí por diante cada vez mais se isolou, Montevidéu cada vez mais se dilatou.

Depois, ele analisa o Tratado de Madrid (1750) e o do Pardo (1761). No primeiro, teve grande participação, como é sabido, o brasileiro Alexandre de Gusmão, membro do Conselho Ultramarino de Portugal e amigo da rainha espanhola, nascida Infanta D. Maria Bárbara de Portugal, esposa de D. Fernando VI.

A amistosidade deu o tom desse novo tratado, segundo Vianna, e “o resultado das negociações foi a assinatura, em Madrid, a 13 de janeiro de 1750, do ‘Tratado de limites das conquistas entre os muito altos e poderosos senhores D. João V, Rei de Portugal e D. Fernando VI, Rei de Espanha’.” Citando Capistrano de Abreu, nosso autor diz que o tratado reconhecia as imprevidências, os maus hábitos e abusos de ambos os povos no acato a Tordesilhas. Portanto, anulou-se a antiga Capitulação e firmaram-se as novas fronteiras.

Os corolários do Tratado foram pequenos acordos regionais entre administradores luso-brasileiros e hispano-americanos, na precisão de questões limítrofes. O problema é que a chamada Guerra Guaranítica (1753-56) prejudicou enormemente os planos metropolitanos. As Missões foram sendo esmagadas, mas a resistência minava a correta aplicação do Tratado. Na Amazônia, por outro lado, as autoridades regionais negociaram bem os ditames do Tratado, mas também aí a influencia jesuítica era forte e, não poucas vezes, considerada prejudicial às manobras políticas. Para piorar a situação, ressalta Vianna, a morte de D. Fernando VI e D. Maria Bárbara conduz D. Carlos III ao trono espanhol e nascem novas hostilidades... que resultam no desfavorável Tratado do Pardo, suspensor dos direitos portugueses assegurados pelo de Madrid.

No cap. VII, Vianna continua a historiar as decorrências da política tratadista entre lusos e hispânicos para resolução dos conflitos americanos. Em 1777, com a ascensão de D. Maria I ao trono português, as negociações desembocam no Tratado de Santo Ildefonso (1777), francamente desfavorável ao império lusitano. Dele diz Vianna:

Embora definitivamente consagrando o princípio do uti possidetis, era injusto o Tratado de Santo Ildefonso pela penalidade imposta a Portugal, da perda da Colônia do Sacramento sem a compensação dos Sete Povos das Missões Orientais do Uruguai. Daí os severos juízos que mereceu de escritores como o Visconde de São Leopoldo, que o considerou “mais que todos, leonino e capcioso”, ou Varnhagen, que escreveu terem sido seus artigos “ditados pela Espanha quase com as armas na mão, e os pactos não podiam deixar de parecer-se aos do leão com a ovelha timorata”.

Com o tratado, novas tentativas de demarcação fronteiriça vão sendo implementadas pela administração colonial do Brasil até que as torrentes francesas de 1789 vão produzir efeitos sérios em Portugal...

Em 1792, o Príncipe do Brasil, D. João, é proclamado Regente de Portugal pela enfermidade da mãe, D. Maria. A política externa joanina, quando a Corte ainda se mantinha em Portugal, é tida por precavista e negocialista ao máximo, na guerra incessante entre os interesses franceses e os britânicos e a freqüente aliança/desaliança luso-espanhola.

Com a transmigração da Corte em 1807/08, novas configurações americanas irão nascer. No cap. IX de HDB, Vianna nota a importância fulcral da aliança anglo-portuguesa para a região, ressalvando, contudo, que

(...) nem sempre elas se mantiveram com tranqüilidade, sendo freqüentes, por exemplo, os choques entre o primeiro representante inglês no Rio de Janeiro, Lorde Strangford, e os sucessivos ministros de D. João, os Condes de Linhares e das Galveias, o Marquês de Aguiar e o Conde da Barca. Varias divergências surgiram entre as duas políticas, como relativamente às respectivas atitudes no Rio da Prata e quanto à manutenção do tráfico de escravos africanos para o Brasil (...). Nada disso, porém, diminui a excepcional importância da aliança luso-britânica, no período joanino.

As retaliações de D. João aos desmandos do Corso se fizeram sentir logo após o estabelecimento da Corte no Rio de Janeiro: em 1º de maio de 1808, Portugal declara guerra à França e manda tomar Caiena, capital da Guiana Francesa — a ocupação perdurará até 1817.

A POLÍTICA PLATINA DE D. JOÃO VI

Na apreciação das manobras do Príncipe Regente e depois Rei D. João VI na América, Vianna aponta todos os interesses em jogo: os dinásticos bragantinos e bourbônicos, os imperialistas napoleônicos, os comerciais ingleses, os nativistas platinos etc.

A ocupação da Banda Oriental pelas tropas luso-brasileiras é interpretada pelo autor como bastante justificável, dada a instabilidade européia, o destronamento da família de D. Carlota Joaquina e a necessidade premente de Portugal recuperar as terras que lhe haviam surrupiado pelo Trat. de S. Ildefonso. Entre 1811 e 1820, sucessivas investidas luso-brasileiras foram implementadas, ora avançando, ora recuando.

Na Espanha, com a queda de Napoléon, o rei-fantoche José Bonaparte é deposto e D. Fernando VII re-entronizado. O monarca protesta veementemente contra a tomada da Banda Oriental e manda preparar exércitos para reconquistá-la. De nada adiantou e a anexação oficial da Província Cisplatina se deu a 31.07.1821.

A ELEVAÇÃO DO BRASIL A REINO UNIDO

Numa interessantíssima narrativa de dois parágrafos da p. 90 de HDB, Vianna nos resume a história de nossa elevação a Reino Unido a Portugal e Algarves, de forma que talvez vários autores tenham dificuldade em fazê-lo.

Indica que a sugestão da elevação foi do representante francês no Congresso de Viena, o Príncipe de Tayllerand, aos plenipotenciários lusos Conde de Palmela, D. Joaquim Lobo da Silveira e Antonio de Saldanha da Gama. Ao que parece, mesmo sem consulta a D. João, estes já expediam documentos de Portugal no Congresso com as inscrições D. João, Prince Régent du Royaume de Portugal et de celui du Brésil...

A carta patente de D. João, de 16.12.1815, eleva o Estado do Brasil à “categoria e gradação de Reino unido ao de Portugal e Algarves (...) de maneira a formarem um só corpo político”.

A INDEPENDÊNCIA E A PEB DO PRIMEIRO REINADO

Na análise do período que se segue ao retorno de D. João a Portugal (1821) e ao emancipancionismo das elites brasileiras que culminaria com a Independência (1822), Helio Vianna se limita a apresentar os fatores que todos os demais historiadores brasileiros de então descreviam. A notar, contudo, que por se tratar de uma obra de história diplomática ou de relações exteriores, ele passa ao largo de minudências na explicação da política interna.

Para o reconhecimento da Independência ele ressalta o Manifesto de D. Pedro, de 6 de agosto de 1822, quando o Príncipe Regente já requeria às nações amigas que enviassem seus representantes diplomáticos ao Brasil e, em contrapartida, já nomeava nossos representantes em Londres, Viena e Roma .

Na famigerada questão do reconhecimento por parte de Portugal, com intervenção britânica, o autor advoga que o Brasil tinha pequenos recursos de manobra e que, ademais, antes de a velha metrópole o fazer, nenhuma outra nação européia nos reconheceria... o que é fato. Por fim, exalta Vianna: “Herdeiros de toda a ação portuguesa na América, assumíamos, assim, a responsabilidade internacional por um dos maiores países da terra”.

A PEB NO SEGUNDO REINADO

Após explicitar ao leitor o término do reinado de D. Pedro I do Brasil (1831) e a questão dinástico-sucessória portuguesa, Helio Vianna inicia sua historiografia das ações de Política Exterior das Regências (1830/40) e de D. Pedro II e seus conselheiros nas décadas de 1850 a 1880.

Escusado dizer que o autor, filo-monarquista, enaltece nosso Imperador sempre que pode. Não poupa elogios, também, à atividade de grandes nomes de nossa diplomacia imperial: Barão da Ponte Ribeiro, Visconde do Rio Branco, Visconde do Uruguai, Marquês de São Vicente et alii. Fazendo-o, Vianna age com justeza, vez que sem esses homens — e sobretudo sem D. Pedro II, numa abstração inexeqüível — o Brasil não existiria...

Do capítulo XII ao XVI, ele esmiuçará nossas relações com os vizinhos platinos, aí incluindo, obviamente, a triste “Guerra da Tríplice Aliança contra o Governo do Paraguai”. Revolta-se Vianna com os “autores apaixonados ou mal informados, que com o proposital ou involuntário esquecimento de certos dados essenciais, procuram atribuir ao Império toda, ou quase toda, a responsabilidade pela maior conflagração internacional do continente” .

A PEB NA REPÚBLICA VELHA

No cap. XVII, ele inicia a apreciação da PEB na República de 1889 e suas conseqüências. Diz que “(...) de 1889 a 1957, tem-se caracterizado, no setor americano, pela manutenção, em suas linhas gerais, das mesmas diretrizes vindas dos períodos colonial e imperial” . Eis um resvalo considerável de nosso autor...

Após citar os processos de reconhecimento da nova forma de Estado no Brasil pelas nações contemporâneas, Vianna divide a PEB, na República, em três fases: “antes, durante e depois da gestão de José Maria da Silva Paranhos Jr., Barão do Rio Branco”... Daí passa às narrativas de questões limítrofes sul-americanas, à ocupação da Ilha da Trindade pelos ingleses em 1895, e à inserção do Brasil na I e na II Guerras Mundiais.

Por fim, como item 6 de seu capítulo, ele resume a adesão inconteste do Brasil ao pan-americanismo, lembrando que desde os tempos do Reino Unido já havia a idéia de uma “Liga Americana” e ressaltando que apesar de Monarquia, o Brasil “sempre apoiou todas as iniciativas para maior congraçamento dos povos do continente, quer para a defesa dos respectivos países contra pretensões européias, quer em congressos políticos ou jurídicos.”

CONCLUSÃO

Os capítulos finais de HDB são explanatórios de nossas díades com Argentina (XVIII), Guiana Francesa (XIX), Bolívia (XX), Guianas Inglesa e Holandesa (XXI), Colômbia e Venezuela (XXII), Peru (XXIII). O cap. XXIV ilustra a participação do Brasil na I Guerra Mundial e o XXV, na II Guerra.

No último capítulo de HDB, Vianna procura aproximar e, pari passu, apontar as diversidades originárias dos povos americanos. Tanto do ponto de vista histórico, quanto econômico, sociológico ou antropológico, o Brasil e seus hermanos têm diferenças notáveis. Elas não impedem, como realça Vianna, que a união de esforços e interesses seja a nossa tônica em Política Externa.

HDB é findada com o elogio do pan-americanismo brasileiro, mas lembrando que “as obrigações internacionais do Brasil não se limitam apenas ao território americano, por ser membro também da Organização das Nações Unidas (ONU)”, o que no ano anterior (1957), nos tinha feito enviar contingente militar ao Egito, por causa do conflito de Suez.

A obra de Vianna não é louvada no Brasil. Se, por um lado, procedem as críticas de Almeida no que concerne ao seu estilo démodé e até enfadonho, por outro, é forçoso dizer que o menoscabo  pelo trabalho de um professor do IRBr em seus primórdios não deveria persistir.

Helio Vianna, autor de mais de vinte livros, um homem e historiador filho de seu tempo, como qualquer outro, também merece lugar de destaque na história da historiografia das Relações Internacionais e da Política Externa do Brasil, nem que seja pelo pioneirismo.


BIBLIOGRAFIA

            ALMEIDA, Paulo Roberto de. Tratados de Caligrafia Diplomática 3 - Hélio Vianna, ou as elites bem comportadas. Brasília, 2004. Publicado em http://www.parlata.org/parlata_indica.php?id_geral=25

            CERVO, Amado Luiz e BUENO, Clodoaldo. História da Política Exterior do Brasil. Ed. UNB/IBRI, Brasília, 2002;

            VIANNA, Helio. História Diplomática do Brasil. Biblioteca do Exército-Editôra (volumes 247/248). Companhia Melhoramentos. São Paulo, 1958.


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NOTAS


Artigo apresentado ao Programa de pós-graduação lato sensu em Relações Internacionais, do Instituto de Humanidades da Universidade Cândido Mendes, em 26 de julho de 2008.

Bruno da Silva Antunes de Cerqueira (*1979) é graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e pós-graduando em Relações Internacionais pela Univ. Cândido Mendes. Foi consultor do Cerimonial da ALERJ (2004-2008), diretor de publicações do Colégio Brasileiro de Genealogia (2005-2007) e presidente do Instituto Cultural D. Isabel I a Redentora (2005-2007). É organizador de D. Isabel I a Redentora, textos e documentos sobre a Imperatriz exilada do Brasil em seus 160 anos de nascimento. (IDII, Rio de Janeiro, 2006) e autor de Descendência de D. Pedro IV, Rei de Portugal e I Imperador do Brasil, in História Genealógica da Casa Real Portuguesa. vol. XV (QuidNovi e Academia Portuguesa da História, Lisboa, 2008).

Cf. VIANNA, Helio. História Diplomática do Brasil. Biblioteca do Exército-Editôra (volumes 247/248). Companhia Melhoramentos. São Paulo, 1958.

Cf. ALMEIDA, Paulo Roberto de. Tratados de Caligrafia Diplomática 3 - Hélio Vianna, ou as elites bem comportadas. Brasília, 2004. Publicado em http://www.parlata.org/parlata_indica.php?id_geral=25 (acesso a 23.07.2008).

Doravante, apenas HDB, para facilitar o texto.

Cf. ALMEIDA, Paulo Roberto de. Op.cit. (acesso a 23.07.2008).

HDB, p. 19.

Mormente as teses de Caio Prado Júnior e seus sucedâneos.

HDB, p. 28.

Para tanto, ao fim do capítulo III, Helio Vianna chega a inserir um quadro genealógico simplificado dos sucessores à Coroa portuguesa. Trata-se de louvável iniciativa, pois que os historiadores hodiernos, pelo excesso de ignorância genealógica, nunca conseguem compreender corretamente o estudo das dinastias, sejam européias, africanas ou asiáticas...

O regime jurídico era o de União Pessoal. Até hoje existente no Reino Unido, que congrega três reinos de mesmo monarca (Inglaterra, Escócia e Irlanda do Norte) e um principado do herdeiro do trono (Gales).

HDB, p. 41.

HDB, p. 46.

HDB, p. 53.

HDB, p. 62.

HDB, p. 73.

HDB, p. 85.

HDB, p. 93.

HDB, p. 94.

HDB, p. 123. Imaginar que José Julio Chiavenatto nada tinha escrito na década de 1950, pois só publicaria suas teses em 1979 e 1983...

HDB, p. 133.

HDB, p. 141.

Prova dele é o fato de que na bibliografia de História da Política Exterior do Brasil, manual também já clássico do estudo da PEB, mas que só dá conta da história da Independência em diante, os autores Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno sequer se preocupam em definir datas para os dois únicos livros de Helio Vianna que inserem. Tanto História das Fronteiras do Brasil quanto HDB são ditos “s/d”...

A outra HDB, de Delgado de Carvalho, foi relançada pela Editora do Senado, com prefácio de Paulo Roberto de Almeida, em 1998.