quinta-feira, 22 de junho de 2006

O neoabolicionismo e a família IRINEU-MARINHO


O neoabolicionismo e a
família IRINEU-MARINHO*

  
BRUNO DE CERQUEIRA**


Emoção, tristeza, culpa, alegria, ânimo, regozijo: são estes, em resumo, os sentimentos que experimento quando assisto SINHÁ-MOÇA, novela do horário de 18h da Rede Globo. Nos últimos dias, como conseqüência do “molho” em casa, que essas viroses nos têm impingido, passei a elucubrar um artigo sobre a trama.

Remake de uma narrativa que já foi transmitida aos quatro cantos do mundo, através da teledramaturgia global, na década de 1980 — e que renovou a imortalidade da brilhante atriz Lucélia Santos como protagonista de novelas sobre escravidão —, SINHÁ-MOÇA é originalmente, um texto da escritora Maria Camila de Oliveira Dezzone, paulista de Jaú, nascida em 1904. Mais tarde, ela casou-se com o banqueiro João Pacheco Fernandes e teve três filhos.

Filha de um imigrante belga, o odontologista Emile Dezzone e de Maria Clarinda de Oliveira — uma sinhazinha brasileira —, Maria Dezzone Pacheco Fernandes, que ficou célebre como “Dona Mariazinha Pacheco” entre seus fãs e admiradores em São Paulo e no Brasil, chegou até a ser agraciada na França, com a Medaille d´Honneur à l´Oeuvre Nationale du Thêatre. No Brasil, apesar de ser a autora do belo clássico sobre a escravidão, não tem sido bem lembrada. E, no entanto, é graças a ela que desfrutamos diariamente diante de nossos olhos das torrenciais narrativas do HEROÍSMO NACIONAL brasileiro do século XIX: o abolicionismo.

A fantástica história do destemido RODOLFO FONTES e da altiva SINHÁ-MOÇA já foi até cinematografada na antiga Vera Cruz, tendo Anselmo Duarte e Eliane Lage no elenco... com direito à direção de Tom Payne e premiação em Veneza!

Pois bem, hoje em dia assistimos ao encantador enamoramento intelectual e corporal do Irmão do Quilombo e Sinhaninha, junto com todos os demais detalhes empolgantes da luta abolicionista, na década de 1880, e seus personagens-símbolos: o bastardo e renegado RAFAEL, os guerreiros-escravos, os jornalistas libertários, o bondoso cura local. De outro lado, rivalizam os anti-heróis escravocratas, liderados pelo pérfido Barão de Araruna. Acompanham-no seus capatazes e feitores, um dos quais, para azar meu... chama-se BRUNO.

No meio do vulcão que é relação de pai e filha, encontra-se a cândida CÂNDIDA...típica mulher do Oitocentos brasileiro: resignada esposa e mãe, sempre a renovar sua fé num Deus que tudo apaziguará, incluindo as pulsões homicidas e sádicas de seu esposo...

A caracterização das personagens dessa readaptação do livro de Maria Dezzone Pacheco Fernandes é feita pelo famoso novelista brasileiro Benedito Ruy Barbosa e suas filhas Edimara e Edilene — se não me engano quanto aos prenomes. Benedito tem coincidentemente em seu nome o patronímico da descendência do jurista baiano RUY BARBOSA DE OLIVEIRA, cuja progênie passou a adotar o nome do Grande Abolicionista.

O elenco é muito bom, com Osmar Prado, Patrícia Pillar, Zezé Motta, Elias Gleizer, Carlos Vereza, Othon Bastos e, obviamente, os mais jovens Débora Falabella e Danton Mello, dando “show de interpretação”. Até nosso ícone do humor, Chico Anysio, lá se encontra, dando uma “palhinha” como fazendeiro local.

Em relação à cenografia, sinto em dizer, seria desnecessário colocar quadros com retratos das Imperatrizes do Brasil no gabinete do Barão. Não só porque se aproximaria mais da realidade histórica que houvesse imagens dos Imperadores e não de suas consortes... como também porque tais imagens ficavam mais reservadas aos palácios da Realeza e não aos dos nobres brasileiros. Contudo, abstraiamos e consideremos que o monarquismo do Barão fosse tanto e tão devotado que ele teria adquirido na Corte retratos das Imperatrizes. Em definitivo, tal comportamento não se coadunaria com a tendência intransigente do escravagismo e do reacionarismo do titular em questão. Isto porque a Família Imperial sempre foi muito mais ligada aos ideais liberais e abolicionistas do que a maior parte das famílias aristocráticas brasileiras...

Quanto ao próprio personagem histórico do Barão, há grande contraposição a quem de fato foi o titular do baronato de Araruna, na longínqua Província da Parahyba, ao tempo do Império, o Coronel Estevão José da Rocha (†1874), um gradualista cuja mercê fora concedida justamente pela Princesa Imperial D. Isabel em sua primeira Regência (1871)... Da mesma forma que a associação entre o republicanismo e o abolicionismo na lírica e galanteadora figura do DOUTOR RODOLFO seja uma “faca de dois gumes”: embora muitos jovens brasileiros da época fossem “abolicionistas e republicanos”, a maior parte dos republicanos brasileiros, que eram uma minoria no contexto nacional, era composta de gente bastante ligada aos interesses da lavoura... Mas a liberdade poética tudo pode e, ademais, consideremos a historiografia que formou e informou a própria autora Maria Dezzone Pacheco Fernandes.

Pois é, a Genealogia explica muita coisa. Seja a nietzscheana “genealogia da moral”, seja a Genealogia propriamente dita, aquela que esmiúça as origens dos humanos através da busca de sua ancestralidade.

Os historiadores e cientistas sociais, pela burrice mais primitiva, aquela que pré-conceitua sempre, desprezam essa riquíssima fonte de conhecimento da humanidade. Os comportamentos, se ainda não se pode dizer que sejam genéticos, certamente são genealógicos. Não há como negar que, se os seres humanos não são díspares geneticamente, eles o são genealogicamente. É exatamente por isso que a História e a Sociologia tanto ganhariam se melhor se aproveitassem do conhecimento genealógico. Antropólogos não parecem ser discricionários: usam e abusam dela.

Se o raciocínio genealógico fosse mais utilizado pelos cientistas sociais, o Brasil certamente ganharia com isso. Se os preconceitos não nos afastassem de grandes fundadores, como Joaquim Nabuco e Gilberto Freyre, produziríamos um conjunto de iniciativas sociais e políticas — não politiqueiras, como é comuníssimo em nossa assolada Pátria — que nos permitiriam NEOABOLIR o escravismo brasileiro que até hoje persiste, inconscientemente, entre nós.

No I Simpósio Nacional do IDII, em setembro de 2005, assim nos expressamos a respeito:

Dito isso, passemos às apreciações do que seja mais especificamente a introdução e conceituação do NEOABOLICIONISMO.
Antes, porém, recorramos a um dos muitos LEÕES DO NORTE, o mestre Joaquim Nabuco, num resumo do que seria o ABOLICIONISMO nos idos de 1883, quando conseguiu publicar com grande esforço, no seu auto-exílio de Londres, o livro de mesmo título, que é considerado obra de víeis político extremado mas que tem, segundo Evaldo Cabral de Mello e outros, evidentes traços de texto sociológico e histórico acurado e basal.
Nela, Nabuco explica que ABOLICIONISMO é um conjunto de idéias e ideais suprapartidários, visando exclusivamente a abolição incondicional do chamado elemento servil do Império do Brasil e a subseqüente implementação de reformas sociais de cunho mormente fundiário e integralizador da vida nacional.
Corria o ano de 1883 e a perspectiva de abolição imediata distava muito para Nabuco, pois a vitória expressiva dos escravocratas nas eleições gerais que o impediram de renovar mandato na Câmara dos Deputados o haviam desapontado enormemente. Em O ABOLICIONISMO, Nabuco tem a oportunidade esplêndida de “radiografar o Brasil”, na expressão de Leonardo Dantas Silva, ao examinar de longe as agruras escravistas quase que inerentes à nacionalidade brasileira que se encontra, por essa época, já bastante moldada.
Como é bem sabido, ele diz ser a escravidão a marca nacional brasileira, para o bem ou para o mal. Que bem? —perguntariam os mais atentos. O bem de um difuso senso caritativo do povo brasileiro em geral que, na dor do escravo, soube reconhecer, aqui e ali, a dor de um irmão, a dor de um semelhante. Contudo, alinhando escravidão e barbárie, ele jamais deixará de creditar-lhe o maior entrave ao desenvolvimento saudável de nossa sociedade. (..)
O jurista Nabuco, tal qual Ruy Barbosa, defenderá a imensa ilegalidade — e não somente, reparem bem, ilegitimidade — da escravidão, enquanto realidade social eminentemente contrária às leis do Império de 1831 e 1850, dando conta da supressão do tráfico externo e interno de africanos no Brasil.
Ressaltará, ainda, nossa particularidade nacional brasileira de não termos criado uma ambiência de ódios raciais como em outras terras colonizadas pelos europeus. E embora para ele, acabar com a escravidão não bastasse, sendo necessário destruir a obra da escravidão, ele considerava que a LEI que garantisse o término jurídico de um estatuto colonial torpe, imoral, asqueroso mesmo, já seria o primeiro grande passo de nosso RESGATE, ou como diremos adiante, nossa REDENÇÃO NACIONAL.
Maria Alice Rezende de Carvalho, em sua fantástica obra O QUINTO SÉCULO, contextualiza em uma narrativa digna do atributo de genial, que o pensamento social e abolicionista nabuquiano se insere nos quadros intelectuais do liberalismo monárquico inglês e que, no intercâmbio, mescla e profunda amizade que têm entre si JOAQUIM NABUCO, ANDRÉ REBOUÇAS e ALFREDO TAUNAY, essa tríade é responsável pelo que de melhor se produziu na intelligentzia brasileira de final do Oitocentos. Com maestria, ela dá conta de esclarecer ao leitor sobre as enormemente díspares  características individuais dos três, sem deixar de apontar para sua grande CONVERGÊNCIA: a abolição e as reformas.
Tais reformas, racionais e radicais reformas, o Brasil não as conheceu. O que conhecemos, a partir de 1889, foram sucessões de governos de LANDLORDS — expressão cara tanto a Nabuco quanto a Rebouças — extremamente autoritários, reacionários e, o pior de tudo, racistas.
Se a década de 1930 em diante passou a representar na História pátria rupturas aqui e  acolá com a velha ordem excludente e estapafúrdia da República Velha, tal não se deu sem o esforço de vários intelectuais, apoiadores ou não do novo regime de Vargas, quando “descobriram” — ou “redescobriram”, ou “reinventaram”, depende da ótica do historiador — o BRASIL.
Diga-se a título de justiça que o maior continuador da obra de NABUCO, nesta época, será seu conterrâneo Gilberto Freyre, fundador de toda uma ciência social brasileira própria.
Contudo, retornando ao ABOLICIONISMO e tentando aqui entabular o exercício de conceituar o NEOABOLICIONISMO, fica relativamente fácil depreender que nosso movimento — digo nosso, do Instituto D. Isabel, mas evidentemente NOSSO, num sentido bem mais amplo, lato e verdadeiramente nacional, como o são, obviamente todos os pré-vestibulares e demais associações voltadas ao ensino dos outrora pobres e marginalizados —, nosso movimento traz consigo a tônica arraigada e viçosa de um engajado RESGATE HISTÓRICO-CULTURAL... mas não é só e sobremaneira dela composto. (...)
Afinal, num BRASIL cada vez mais assolado pela ausência de lideranças políticas comprometidas com as causas populares genuínas e ancestrais, cabe-nos indicar a exemplaridade nabuquiana, rebouciana e taunaysiana a todo momento. Cabe-nos rememorá-los, bem como em nada contrapor-se e até endossar o culto cívico-religioso de D. Isabel.
Pari passu, evidentemente, neoabolir significará extirpar de nós mesmos qualquer resquício do Brasil escravocrata de antanho: brancos e pretos brasileiros são chamados, mais do que nunca, a unirem-se por uma NAÇÃO finalmente remida e salva de suas seculares injustiças sociais. Todos, juntos e irmanados, somos chamados à missão maior de cada cidadão brasileiro: defender, trabalhar, atuar, motivar e engrandecer a EDUCAÇÃO, maior lacuna que os homens de governo novecentistas nos legaram.
Somente com EDUCAÇÃO, EDUCAÇÃO e EDUCAÇÃO nossa maior mácula histórica e constitutiva será plenamente superada. Finalmente, chegará o dia preconizado por José Bonifácio, Paranhos, Luís Gama, Rebouças, Nabuco, Patrocínio, Dantas, Dom Obá, Rui Barbosa, Saldanha da Gama, Antonio Conselheiro, Lima Barreto, João do Rio, D. Luiz, além de tantos e tantos anônimos, quando o Brasil negro-mulato-mestiço, verdadeiramente redimido, voltará a orgulhar-se dele próprio, fazendo do ato de D. Isabel uma cotidiana FÉ DE OFÍCIO, tomando emprestada a expressão que seu exilado pai usou para designar seu testamento político.
Enfim, e por outras palavras, quando finalmente expurgarmos de nossa NAÇÃO os óbices sociais que pesam sobre milhões e milhões de brasileiros excluídos, teremos concluído nossa missão e o futuro nos reservará a gratidão de nossos descendentes.
Estivesse aqui entre nós um profissional de psicologia e eu não sei se o há, e diria, muito provavelmente, que NEOABOLIR nada mais é senão PSICANALIZAR a Nação. E é exatamente isso!
Revisitar o passado histórico em busca de resultados para nossas pesquisas de História e Ciências Sociais e Políticas mas, certamente também, praticar o exercício constante de analisar nossas posturas pessoais perante o entorno de problemáticas que se nos fazem aparentes.


Dentro de todo o exposto até aqui, onde entraria a análise da importância social da família IRINEU-MARINHO? Aliás, por que tentar relacionar os membros dessa linhagem com o movimento neoabolicionista? Exatamente por causa da Genealogia e da História do Brasil e dos BRASILEIROS.

O niteroiense Irineu Marinho Coelho de Barros (*1876 †1925), progenitor e maior influência — confessadamente — na vida do jornalista e mega-empresário brasileiro Roberto Marinho (*1904 †2003), foi um competente tipógrafo que acabou se tornando proprietário de jornal e até figura política proeminente de oposição à auto-afirmatória e oligárquica República Velha.

A recente biografia Roberto Marinho, do jornalista Pedro Bial, publicada pela JORGE ZAHAR no ano passado, dá-nos qualificadíssimos indícios de como radiografar o Brasil do Novecentos, valendo-se do itinerário de seu maior líder empresarial.

História é aquilo que o historiador faz. Contudo, atinente ao que minha professora de metodologia e tutoria históricas — na PUC-Rio —, Mary Del Priore, sempre comenta, os historiadores brasileiros insistem em não estudar nossas elites, sejam as do XX, do XIX ou da Colônia. Com isso, além de manterem a pobreza de recursos indiciários na análise mais ampla da sociedade nacional, pouco se permitem compreender uma série de motivações para continuísmos ignóbeis de nosso passado patriarcalista e escravocrata.

Quando um historiador se dedica ao ensaísmo das presentes linhas, tentando exercitar um estilo de jornalista pouco afeito ao academicismo da maioria dos historiadores, talvez esteja apenas e tão-somente chamando a atenção para o fato de que “coisas que ligam nada a lugar nenhum” às vezes funcionem melhor do que ensandecidas teorizações dando conta de teses e dissertações monográficas que pouco, ou nada, expliquem a famigerada QUESTÃO SOCIAL, que deu origem ao pensamento nabuquiano, freyreano, buarquiano etc.

Isto porque ao ver SINHÁ-MOÇA, diariamente me recordo — pela famosa associação de idéias — que tal novela se passa na mega-produtora de artefatos do imaginário popular brasileiro que é a “telinha” do grupo empresarial O GLOBO. Este império começou, na década de 1920, com o jornalista Irineu Marinho, um singelo brasileiro filho de imigrante português (João Marinho Coelho de Barros) com mulata brasileira (Edwiges de Souza).

Este senhor, que provavelmente era considerado um “negro” — termo pejorativo com que os dirigentes e esnobes brasileiros designavam os pretos e mulatos — por homens como o Presidente Epitácio Pessoa, que o mandou encarcerar por seu apoio ao tenentismo dos Dezoito do Forte (1922), foi um gigante do jornalismo brasileiro e legou aos filhos, mormente o primogênito, uma marca que indubitavelmente tornou-se marca nacional brasileira, de um ponto de vista histórico que se queira pouco parcial e mais eqüidistante.

Historicizar é criticar. Assim, jamais deixaríamos de identificar os eventuais malefícios que a programação dos diversos veículos de comunicação GLOBO — e também das outras emissoras — tragam ao conjunto dos BRASILEIROS. Todavia, até que ponto as programações televisivas não são um reflexo, triste porém real, de nossa atual fase de desenvolvimento sócio-educacional?

Sempre costumo colocar que todos os parlamentos brasileiros, de Norte a Sul — câmaras de vereadores, assembléias estaduais e Congresso Nacional — são o maior ESPELHO SOCIAL existente. Não há como negar! Se são corruptos os políticos, são corruptos e corruptores os que os elegem. Existe algo de muito torpe que não se confessa em nossa prática recorrente de “apontar o dedo” e nada dizer a respeito de nós mesmos.

Uma das maiores torpezas nacionais é justamente a negativa de nosso racismo social e do lugar que coube aos negros na dura realidade brasileira do séc. XX. Antes, no XIX, escravos. Depois, no XX, marginais ou sub-cidadãos.

Qual a nossa contribuição a tudo isso? Como conseguir a ABOLIÇÃO total da escravidão entre nós? Como implementar a obra que Nabuco, Rebouças, Taunay e tantos outros não puderam executar? Como concretizar o III Reinado que não veio???

O primeiro, e principal passo será NEOABOLIRMOS em nós mesmos essa herança trágica da brasilidade. Se somos todos mestiços, étnica e culturalmente, incluamos em nossos discursos e postulações, as mais cotidianas, sobretudo os representantes das complexas classes médias brasileiras, que “esses problemas de negros e de cotas nas universidades”, ou “esses problemas de violência urbana e altos índices de marginalidade”, não são “deles”, são NOSSOS.

Tudo e todos temos história(s) e, portanto, não podemos, sem mais, apontar algozes, ignorando-a(s).

Os cientistas sociais, ao criticarmos saudavelmente os Irineu-Marinho e sua importância política e econômica indiscutível no Brasil das décadas de 1960, 70, 80, 90 e até hoje, não nos esqueçamos de suas origens e das agruras que o fundador desta família sofreu por sua arraigada defesa de um país livre, digno e forte. A mais importante família burguesa do Brasil não deve ser demonizada, como seria do gosto brizolista clássico, nem santificada. Deve ser brasilizada.

Típica linhagem brazuca, com sangue português, africano, italiano e, nas novas gerações, alemão e espanhol, eles devem ser encarados — e devem se encarar — como brasileiros a serviço da comunidade nacional. É o que mandaria o bom cristianismo católico que eles professam. Aliás, aqui se poderia abordar um outro fenômeno interessante de análise sociológica, que é o da aristocratização de famílias burguesas, mas não será o caso.

Em nome da gratidão pela reiterada oportunidade de se falar em escravidão e abolicionismo na “telinha” da Rede Globo, homenageamos a figura de IRINEU MARINHO, classificando com seu nome a todos os seus descendentes.

E viva SINHÁ-MOÇA!

segunda-feira, 15 de maio de 2006

A grande tragédia social brasileira

Com o coração sangrando de dor pelo aviltamento que a Pátria brasileira sofre com a impunidade deslavada que reina em todas as instâncias públicas — sejam as governamentais ou as civis —, envio aos Amigos do IDII um texto que escrevi para o jornal O GLOBO (RJ), em resposta a um artigo publicado em 21.04.2006.

DEUS SALVE O BRASIL!

Bruno da Silva Antunes de Cerqueira – Pres. do IDII



A grande tragédia social brasileira


Nosso estimado amigo Ruy Barreto publicou aqui em 21 de abril passado o artigo “E tudo acabou numa grande tragédia social”. O artigo é muito interessante do ponto de visto histórico, mesmo que não tenha sido escrito por historiador.

Depreende-se dali a noção de que o 13 DE MAIO DE 1888 provocou uma grande crise no Brasil daquele ano e que, conseqüentemente, o desfecho desta crise econômica, social e mormente política foi o 15 DE NOVEMBRO DE 1889, um ano e meio depois.

A historiografia mais recente acerca da transição do Brasil da Monarquia para a República é quase unânime em rechaçar as velhas teorias históricas segundo as quais o advento da República seria um “caminho natural” para o Brasil de fins do séc. XIX. Exposta sobretudo às crianças através dos livros didáticos, essas e outras construções duvidosas permearam o extremamente parco imaginário republicano disseminado entre os brasileiros. Conforme ressalta o acadêmico J. Murilo de Carvalho em Formação das Almas (Cia. das Letras, 1991), a República nunca se popularizou, nunca se “republicanizou” no Brasil, pelo seu pecado original de golpe militar — e militarista... —, anti-democrático, profundamente autoritário e anti-constitucional.

O Brasil nunca mais foi o mesmo, de um ponto de vista politológico — se pudermos falar assim —, daqueles três dias fatídicos (15-16-17/11/1889) para cá.

Abateu-se sobre o país uma sucessão de crises governamentais, guerras, fratricídios que nós jamais havíamos espectado antes, em toda a nossa História, como os terríveis conflitos da Revolução Federalista na região Sul, Canudos (BA) e Contestado (SC) — somente para citar os maiores.

Se alguém pudesse resumir numa única expressão qual teria sido essa enorme tragédia social brasileira à qual Ruy Barreto fez menção em suas boas linhas acerca do tema a que tanto nos dedicamos — abolicionismo e neo-abolicionismo —, essa expressão seria cabalmente: a República Velha.

Isto porque ao invés de gozarmos o III Reinado, com D. Isabel I e seus “homens” no poder — os jovens Joaquim Nabuco, André Rebouças, José do Patrocínio, Alfredo Taunay, Affonso Celso e os mais velhos Cons. João Alfredo, Sen. Dantas, Cons. Laffayette e outros —, tivemos a República Velha (1889-1930), período de maior massacre da cultura popular brasileira e suas representações.

A grande tragédia social brasileira foi o surgimento da favelização, fenômeno proporcionado pelas reformas urbanas ensandecidas de políticos inábeis ao governo, como o ingênuo Pres. Rodrigues Alves e o engenheiro alçado à prefeitura carioca, Pereira Passos. Homens que durante o Império prestaram bons serviços ao Brasil, mas que certamente não poderiam nos governar, não poderiam estar acima dos demais brasileiros, incondicionalmente. Fazendeiros da velha aristocracia brasileira (“escravocracia”), tão acostumados ao mandonismo rural e patriarcalista do Brasil colonial — que persistiu no Brasil Imperial —, esses homens teriam sim, para o nosso bem, que estar abaixo da imperiosa mulher que foi D. Isabel, justamente cognominada de “a Redentora” por seu pai e por todos os brasileiros de 1888.

Mas... a História nos prega peças. Por alguma razão alheia às teorizações de historiadores e cientistas sociais, o Brasil teve de passar pela República Velha e sua obra avassaladoramente perniciosa e funesta nas permanências cruéis do colonialismo ibérico.

Não foi só a velha província fluminense que decaiu tremendamente: o Brasil inteiro assolou-se.

Que um senador como Antonio Prado tenha defendido os seus interesses — e os dos demais fazendeiros de São Paulo — no jogo político que antecedeu à LEI ÁUREA, também era de se esperar. O que não se pode dizer é que nossa tragédia tenha sido a vitória do maior movimento social que o Brasil do século XIX conheceu: o ABOLICIONISMO.

O dia de nossa Redenção enquanto Nação (13 de maio de 1888) foi, conforme todos os relatos da época, o dia mais feliz da História do Brasil e dos brasileiros. Até o auto-intitulado “caramujo” Machado de Assis dançou nas ruas cariocas...

O problema não foi ter havido um “atropelamento” legislativo que provocou crises governamentais insolúveis. Muito pelo contrário: em 1890 o Jubileu de Ouro de D. Pedro II estava programado para que se repetissem as festas grandiosas que o pós-Abolição fomentou em todo o País.

Medidas do Governo Imperial para a reforma agrária garantidora dos direitos dos negros estavam sendo engendradas. O III Reinado estava chegando... Mas não veio!

Eis a grande tragédia social brasileira: não ter permitido que D. Isabel I reinasse, a não ser no exílio — palavras de Assis Chateaubriand.

Quando comemoramos em 2006 seu 160º aniversário de nascimento, essas palavras não poderiam deixar de ser proferidas!