quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Dona Sinhazinha, minha Avó: paradoxos da humana condição



Dona Sinhazinha, minha Avó: paradoxos da humana condição


Recorrentemente lembro-me de minha querida avó, Dona Maria Amélia da Conceição, conhecida toda a vida por Sinhazinha.
Ela se foi em 19 de junho de 2005, em Niterói. Nascida no reinado do Papa Bento XV (1854-1922), despediu-se da vida terrena no de Bento XVI.
Minha avó era uma Antunes de Siqueira, família que Carlos Barata indica em seu “Dicionário das Famílias Brasileiras” (Rio de Janeiro, 1999, tomo I, vol. I, página 226) desta forma:

ANTUNES SIQUEIRA - Família de abastados proprietários rurais estabelecida na Zona da Mata de Minas Gerais. Descendem de Francisco Antunes de Siqueira, nasc. por volta de 1757, natural da Paróquia de Nossa Senhora da Assunção do Couto de Alvim em Portugal, filho de Francisco Antunes e de Isabel de “Cerqueira”. Passou ao Brasil, onde casou, por volta de 1780, com Teodora Dias Pereira, natural da Freguesia de Barbacena deste Bispado de Mariana, Minas Gerais. Entre os descendentes do casal: I – o filho, Capitão Francisco Antunes-de Siqueira, natural de Portugal e fal. cerca de 1829. Com grande geração deixada do seu cas. com Maria Angélica de Magalhães, natural da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Catas Altas, no Bispado de Mariana (MG), filha de Bernardo de Magalhães e de Joana Angélica Álvares; II – o neto, José Antunes de Siqueira, filho do item I, que deixou geração do seu cas. com Laura Pereira Franco; III – o neto, Francisco Antunes-de Siqueira, filho do item I, natural da cidade de Piau - Minas Gerais, e falecido a 23.08.1881, em Angustura, Minas Gerais. Com geração do seu casamento com Francisca Carolina Côrtes Couto, falecida em Madre de Deus do Angu, atual Angustura - Minas Gerais, filha de Francisco Gonçalves Couto e de Ana Gonçalves Côrtes; IV – o neto, Antonio Antunes de Siqueira, filho do item I, nasc. em 1808, e falecido a 13.07.1874, em Madre de Deus do Angu, atual Angustura - Minas Gerais. Major; fazendeiro, proprietário da fazenda da Glória, Angustura (MG). Chefe do ramo de Juiz de Fora, do seu casamento com Josefina Emilia Villas Boas Coutinho, nasc. a 28.11.1821, no Pará, e falecida a 24.04.1914, em sua residência, no Largo da Grama, em Leopoldina, filha de José Alexandrino Vilas Boas Coutinho e de Lourença Emília Cavalcanti Jorge; V – o neto, Bernardo Antunes de Siqueira, filho do item I, que deixou geração do seu cas. com Francisca Veridiana de Padilha; VI – o neto, Domingos Antunes de Siqueira, filho do item I, que deixou geração do seu cas., a 17.04.1844, em São Januário de Ubá - Minas Gerais, com Maria Emília de Oliveira, filha do alferes João Antunes Nepomuceno e de Francisca Candida Umbelina (Barata, Famílias de Ubá); VII – o bisneto, Tobias Antunes Franco de Siqueira Tolendal, filho do item II, nascido em 1847, em Rio Novo, Minas Gerais. Com geração do seu segundo casamento com Minervina Amelia Spindola; VIII – o bisneto, Antônio Antunes de Siqueira, filho do item III, que deixou geração do seu casamento com Amélia Peixoto; IX – o bisneto, Francisco Couto Antunes de Siqueira, filho do item III, que deixou geração do seu casamento com Maria Balbina de Figueiredo Côrtes; X – o bisneto, Antônio Antunes Siqueira, nascido em 1848, em Angustura, Minas Gerais, MG, que deixou geração de seu cas., a 26.08.1871, na Madre de Deus do Angu, atual Angustura, com Ana Elisa Vidal Leite Ribeiro, natural de Leopoldina - Minas Gerais, filha de Manuel Vidal Leite Ribeiro e de Maria Teresa Monteiro de Barros, da importante família Vidal Leite Ribeiro (v.s.), de Minas Gerais; XI - a bisneta, Maria José Villas Boas de Siqueira, irmã do anterior, baronesa de Bonfim, por seu casamento, a 29.07.1879, no Rio de Janeiro, com José Jeronimo de Mesquita, nascido a 15.11.1856, no Rio de Janeiro, onde faleceu a 23.09.1895. Foi abastado capitalista, fazendeiro e proprietário. Era comendador da Imperial Ordem da Rosa. Agraciado com o título de barão de Bonfim, por Decreto de 19.08.1888. Filho do Barão, Visconde e Conde de Mesquita, Jeronimo José de Mesquita e de Maria José Willoughby da Silveira. O casal recebeu de presente de casamento do avô do noivo (Marquês) a Fazenda Paraizo, no distrito da Providência, Município de Leopoldina, onde ainda residia a baronesa em 1906.

Antonio Antunes de Siqueira (1853-1935), pai de nossa Sinhazinha, era um típico patriarca rural, dos tantos que Gilberto Freyre pesquisou e brilhantemente apresentou em Casa-Grande e Senzala, Sobrados e Mocambos e Ordem e Progresso, sua trilogia explicatória do Brasil.
Antonico Antunes era um “coroné”, ainda que eu desconheça qual tenha sido sua patente da Guarda Nacional. Sei que foi “intendente municipal” em Itaperuna e chefe republicano, mas não pesquisei os detalhes de sua carreira política. Antes de desposar minha bisavó, a bondosa sinhazinha Maria Amélia Ribeiro (1875-1965), ele havia sido casado com duas outras sinhazinhas do Noroeste Fluminense, Umbelina Elvira de Figueiredo Firmo e Úrsula Dias Fragozo. Desses casamentos ele trouxe para a terceira esposa oito filhos para que ela criasse. O problema é que minha bisavó já era viúva... Seu primeiro marido era ninguém menos que seu padrinho de batismo, com o qual havia sido unida aos 12 anos por vontade paterna e com as devidas dispensas episcopais... O padrinho-marido era o Capitão da Guarda Nacional Francisco Teixeira de Siqueira Sobrinho[1], o famoso Chiquinho do Barro Branco, dono de toda essa região do atual Município de Bom Jesus do Itabapoana (RJ). De uma primeira esposa Chiquinho do Barro Branco gerara seis filhos.


Antonio Antunes de Siqueira e seus filhos, netos (e bisnetos?).
Sinhazinha está à direita de seu pai.
Cerca de 1927. São José do Calçado (ES).



Quando desposou Maria Amélia Ribeiro, Antonico Antunes era um viúvo na casa dos 50 anos e ela, uma viúva na casa dos 25. As proles de ambos somavam onze crianças vivas; o novo casal produziu mais nove filhos: Antonio (morto bebê), Braz, José, João, Antonino, Gastão, Joviano, Otaviano e Maria Amélia da Conceição. A matemática absurda dessa sucessão de casamentos gerou o fato de que minha bisavó criou quase trinta filhos e enteados!!! Todos tinham os nomes católicos de estilo, mas eram conhecidos por seus apelidos (Nenzinha, Filhinha, Tudinha, Carlitos, Zezé e outros.).


Sinhazinha, aos 12 anos.
São José do Calçado (ES), 1929.


Minha avó, que, ao ser registrada no cartório da pequena São José do Calçado (ES), onde nasceu a 15 de janeiro de 1917, era a ÚLTIMA desses entroncamentos genealógicos[2], ganhou o prenome triplo de Maria Amélia da Conceição, sempre alegou que seu nome seria apenas “Maria da Conceição” mas que o escrivão acrescentou o “Amélia” por causa do nome da mãe e da avó materna (a primeira Maria Amelia da Conceição e a segunda Amelia Maria da Conceição). Não se sabe se foi assim, mas é muito provável que tenha sido. Ao nascer, após vinte irmãos e meios-irmãos, ela foi “oficialmente” declarada SINHAZINHA de todos eles por Antonico Antunes. Em 20 de junho de 1917, a pequena Maria (consta só isso no registro paroquial) foi levada à pia batismal por Demerval Medina e Áurea Álvares Medina, na Igreja Matriz de São José do Calçado.



Antonico Antunes, sua mulher Maria Amélia de Siqueira,
seu filho José (Zezé), sua filha Sinhazinha (seg. da esq. p/ dir.) e a neta, Lanta.
Cerca de 1932. Praça XV, Rio de Janeiro.


Pelo que ouvi e interpretei do que minha avó sempre me contou, Antonico Antunes era uma pessoa autoritária, racista e vaidosa — ou “besta”, no linguajar mineiro daqueles anos 1910, 1920 e 1930. Era antipático aos pretos e se negava a cumprimentá-los quando “ousavam” lhe estender as mãos. Já contei, em outro texto, o que ele dizia nessas horas: “Tu não te enxergas, negro!”... Todavia, quando estava à morte, um médico negro cuidou dele e, ao morrer, este mesmo médico carregou uma das alças de seu caixão. Esse paradoxo gritante sempre me chamou a atenção, pois minha avó era, ela própria, racista e preconceituosa, como de resto a imensa e esmagadora maioria de seus contemporâneos.
Quando ela adoeceu, no início de 2005, vítima de um câncer de pâncreas, altamente letal, acompanhei com minhas tias e meu pai seus últimos dias no hospital e pude ver cenas inusitadas. Uma delas era que ela beijava a mão de muitas das pessoas que a iam ver. Tirante o bom Padre Carmine Pascale, que levei na festa de Santo Antonio (13 de junho) para ministrar-lhe os Santos Sacramentos, era estranho a mim ver Vovó Sinhazinha beijando a mão de diversos “inferiores hierárquicos” dela, como sua sobrinha Terezinha de Jesus Siqueira ou a moça que limpava o quarto, uma servente negra... Beijava-lhes a mão e chorava, sempre...
Estranho, mas não incompreensível. Tal como muito provavelmente ocorrera com o pai dela, aproximando-se da morte e verdadeiramente se arrependendo, em seu coração, por décadas de comportamentos preconceituosos e racistas, Vovó Sinhazinha se redimia antes de se apresentar ao Todo-Poderoso no qual ela acreditou por toda a vida. Católica fiel e devotada, rezava diariamente, às 15h, durante uma hora, fechada em seu quarto, sem que ninguém pudesse interromper. Implorava a Deus e a Nossa Senhora Aparecida (nossa Mãe do Céu preta!) pelos filhos, netos, parentes e, também, pelas “crianças que perambulam pelas ruas, pelos velhos abandonados etc.”, conforme ela me narrava quando eu lhe perguntava do que se compunham suas prédicas.
Sua filiação ao Catolicismo era incondicional, até por não simpatizar e desconhecer as demais religiões cristãs e não-cristãs. Mas ela não ia à Missa aos domingos, contrariamente ao que se dera com sua mãe e a imensa maioria de seus antepassados, mulheres e homens de famílias muito religiosas e cheias de cônegos. Nisso já havia algum tipo de ruptura, ainda que ela não soubesse e nem quisesse saber como explicar.
Ela me dizia que seu pai era muito emotivo e que chorava muito. Quando via um filho, quando abençoava um neto, quando encontrava um velho amigo. Ela era igual... Algo que talvez se aproximasse da mania depressiva, mais do que de uma simples melancolia. Após a perda de toda sua fratria — o último a ir foi Tio Gastão Antunes de Siqueira (†2003), que eu visitava muito em Icaraí, junto com Vovó — e da sua queridíssima amiga de infância Maria da Conceição Cerqueira Cardoso de Campos — Pequetita[3], sobrinha de meu avô Lelé, que se foi em março de 2005 —, suas angústias e tristezas somatizaram o câncer que a ceifou[4].
Vovó tinha por mim um carinho especial. De seus três únicos netos, eu era o do meio e “sobrava”, de algum modo, entre um irmão primogênito e homônimo de meu pai e um mais novo, eterno enfant gatté de minha mãe. Desde muito pequeno eu amava profundamente ela e tudo que representava: o passado, o poder, a autoridade, a família, a religião. De fato ela sempre encarnou para mim valores dos mais tremendos e que, hoje, entendo por que são considerados arcaizantes por tantos filósofos, historiadores e cientistas sociais em geral.
Um dos paradoxos mais interessantes a mim, e que responde em grande parte pela personalidade isabelófila que desenvolvi, era sua relação de amor/ódio com Dona Isabel (1846-1921), a Redentora da História do Brasil. Ela sempre dizia que “a culpa das coisas darem errado no Brasil é da Princesa Isabel, que libertou a negrada e provocou a desordem”; essa era a fórmula paterna. De outro lado, ela me contava em detalhes e com entusiasmo a alegria de sua mãe quando, aos 13 anos, assistiu às festas pela Abolição (1888) na fazenda do pai e na Zona da Mata de uma maneira geral. Enquanto narrava, Vovó embargava a voz... humano, demasiado humano...
Voltemos a sua biografia. Aos treze anos de idade, Sinhazinha foi obrigada a noivar com o jovem Eristhildes Euzebio, o Lelé. O apelido, embora se assemelhe ao vocábulo popular que designa uma pessoa “doida”, não tinha essa conotação específica e era um dos muitos que definiam a prole de Joaquim Mendes de Cerqueira (1877-1954) e sua mulher, Jozina (nascida Lomeu de Oliveira Bastos) — os irmãos de Lelé eram Quidinho (Euclides), Belinha (Elvira), Tide (Erothilde), Ladinho (Esberalde), Didi (Edivaldo), Edith e Elsa. Em outra oportunidade falarei desses meus bisavós, tios-avós e suas histórias.
Lelé era uma espécie de “playboy” rural da época — um agroboy, diríamos hoje. Seu pai saíra de São Paulo de Muriahé (MG) em meados da década de 1910 para se estabelecer em Bom Jesus do Itabapoana, noroeste do Estado do Rio de Janeiro, na divisa com o Espírito Santo. Não sei se houve briga familiar, por partilha e coisas do gênero, mas o fato é que Sô Quinca Cerqueira foi viver com seus filhos e colonos na pacata Bom Jesus, então distrito do Município de Itaperuna.
Em Muriaé e nas pequenas cidades erguidas na ribeira do rio de mesmo nome, em Minas e no Rio, os Cerqueira eram potentados rurais com os demais landlords (expressão rebouciana) que haviam desbravado a Zona da Mata mineira: os Pinto, os Cezar, os Penna, os Garcia, os Bastos e outros. É o que nos relata o livro “Terra da Promissão” (1956), do Major Porphyrio Henriques da Silva (1868-1953), um deputado da antiga Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro sediada em Niterói. Porphyrio Henriques havia sido, na infância e adolescência, um colono da família Cerqueira Bastos.
Lelé nasceu em Muriaé, em 14 de outubro de 1910, na Fazenda Boa Sorte[5]. Foi dificílimo para mim descobrir no livro de batismo paroquial seu registro, pois o padre o batizou como “Arestides” por obviamente desconhecer as manias de Jozina Lomeu de Cerqueira no quesito “nomes exóticos”. O padrinho de Lelé era o Coronel Domiciano Antonio Monteiro de Castro (1821-?), seu tio-avô-afim, pois que a esposa dele e madrinha do bebê era Landolina Mendes de Cerqueira, a tia de Sô Quinca CerqueiraDomiciano de Castro, que presidiu a Câmara Municipal de Muriaé na década de 1880, era sobrinho do 1º Barão de Leopoldina, Manoel José Monteiro de Castro (1805-1868) e do 2º Barão de Congonhas do Campo, Lucas Antonio Monteiro de Castro (1812-1878). Os Monteiro de Castro são o ramo leopoldinense dos poderosos Monteiro de Barros, espraiados em todas as Minas Gerais...
O noivado de Lelé e Sinhazinha, em 1930, foi um desejo dele, que se encantou pela donzela numa festa ou quermesse ocorrida em Bom Jesus. A moça era de “fechar o comércio”, como se dizia, ou seja, muito bonitinha. Mas não queria nenhuma obrigação, pois em suas palavras “queria jogar peteca, pular corda, brincar de boneca” e Lelé queria noivar (leia-se namorar). Da obstinação do noivo e do desprezo da noiva nasceu um compromisso que, frise-se, não era almejado pela mãe e algumas irmãs do jovem Lelé. Já ele, o mancebo, andava armado, como os outros jovens ricos de sua época também faziam, e dizia à noiva que se ela não o quisesse, se teimasse em desprezá-lo, ele dispensaria “seis balas do revólver” no rapaz que ousasse se aproximar dela, bem como nela própria, situação que incutia um medo considerável na pequena Sinhazinha.
Os Cerqueira eram uma das famílias mais ricas na Bom Jesus daqueles tempos. O primeiro automóvel da cidade, importado do Reino Unido no início dos anos 1920, pertencia a Dona Jozina, uma “coronela” bem mais imperiosa do que seu pacato marido... A sede da fazenda central da família possuía banheiro (salle de bains) e era decorada com afrescos e tapeçarias europeias. Eles produziam açúcar, café, material de olaria e tinham casas de aluguel e outras rendas.
Sinhazinha, apesar da origem "nobre", era pobre. Pois que ao nascer seu pai havia dilapidado integralmente o patrimônio da terceira e última esposa, a viúva do rico Chiquinho do Barro Branco. Nas mesas de pôquer, o perdulário Antonico Antunes desfez-se de terras, gados, casas que, observe-se bem, não eram suas, mas que pelo Código Civil de então cabia-lhe administrar, sendo a mulher uma “incapaz”. O resultado dos desatinos do marido foi conceder a Maria Amelia uma velhice pobre e insegura. O casal foi separado pelos filhos nessa ocasião, quando Sinhazinha era uma criança de talvez 10 anos. As filhas de Maria Amelia e Chiquinho do Barro Branco, por motivos óbvios, odiavam o marido de sua mãe e transferiam aos seus meios-irmãos esse ódio; algo comum, bem comum...
A mais velha dessas irmãs, Bezica (Maria Teixeira de Siqueira) era casada com Leonides Furtado Tardin (1888-1985), administrador da fazenda de Sô Quinca Cerqueira e, ele mesmo, pequeno agricultor. Com ela viviam a mãe e a irmãzinha menor, Sinhazinha. Bezica e suas irmãs Neném (Leonor) e Pitita (Francisca) tiranizavam-nas, uma vez que não podiam fazer nada contra Antonico Antunes, já idoso e acamado em casa de um filho, no Calçado (ES).
De maneira que a infância de Sinhazinha foi sofrida, com humilhações constantes de suas irmãs maternas. Foi necessário que morresse o pai de Maria Amélia, avô de nossa biografada, para que elas pudessem, com a partilha da herança do pequeno fazendeiro luso-brasileiro João Caetano da Costa Ribeiro (†1932)[6], adquirir uma casinha e sair da residência de Bezica. Juntos foram com elas os antigos escravizados Tia Fidá, Modesto e Generosa, amantíssimos de sua sinhá Maria Amelia, a qual, em criança, saía do quarto de madrugada para apanhar na dispensa de sua casa alimentos os mais diversos e levar para a senzala...
Vivendo sozinha, embora sempre muito visitada — lembremos dos cerca de 30 filhos e enteados que criou — Maria Amélia temia morrer e deixar no desamparo sua caçula, motivo pelo qual aceitou de bom grado que o menino Lelé noivasse com ela, mesmo que a contragosto da menina. Como já dissemos acima, o noivado desagradava Sá Josina e especialmente sua filha mais velha, Belinha (Elvira), mas era bastante abençoado por Quinca Cerqueira, um bon-vivant que adorava as mulheres, a música e a religião... Ultracatólico, e cheio de amantes e filhos bastardos — aos quais nunca desamparava —, o latifundiário era um violeiro adorado por todos que o conheciam. Como minha avó sempre repetiu para mim, “Sô Quinca Cerqueira gostava de todos: ricos, pobres, brancos, pretos, de forma que todos o amavam”.
Certa feita, irritado com a irmã mais velha que o desejava noivo de uma prima rica, do ramo Cerqueira-Pinto, Lelé desligou o gerador de energia da fazenda que mantinha a “luz própria” daquela casa-grande enquanto toda Bom Jesus dormia, após as 20 horas. Isso ocorreu na ocasião de uma grande festa, parece que noivado de um dos irmãos de Lelé, e causou rebuliço no lugarejo...
E foi assim que a 21 de junho de 1934 uniram-se em matrimônio os jovens Eristhildes Euzebio e Maria Amélia da Conceição. Acompanharam-nos apenas a mãe da noiva e poucos irmãos seus. Da família do noivo, a demonstrar o repúdio, não foi ninguém, por ordem expressa de Dona Jozina, a quem até o marido temia... Lelé desposou sua amada Sinhazinha, embora ela jamais o tenha amado, apenas respeitado, conforme sempre ressaltou.
Quanto à família de Lelé, todo o seu orgulho de classe e de casta estava com os dias contados... Entre 1936 e 1937 — não pude apurar, até hoje —, Sô Quinca Cerqueira foi enredado por três “amigos” e assinou duplicatas que somavam a absurda e vultosa quantia de 300 contos de réis[7]. Dois deles eram advogados e o outro, fazendeiro de prestígio no local, era Francisco Ribeiro Aquino, o Chichico das Areias (do nome de sua propriedade, a Fazenda das Areias), que consta ter sido neto do Barão de Aquino (1837-1921). O interessante é visualizar, através do portal Geneall.net, que um dos filhos do Barão de Aquino, também Francisco, era marido de Rita de Cássia Antunes de Siqueira Domingues, uma prima de Antonico Antunes...
As duplicatas, acertadas no sistema financeiro carioca, foram motivo de discórdia do casal Joaquim-Josina, pois que a mulher não queria assiná-las de nenhuma forma e o marido, eterno fiador de seus amigos, impôs o negócio jurídico. Não tendo sido saldadas as duplicatas, os bancos do Rio de Janeiro foram a Bom Jesus do Itabapoana confiscar a quase totalidade dos bens de Joaquim Mendes de Cerqueira, levando-o à bancarrota. Após a fase em que filhos e colonos pensaram em matar Chichico das Areias e os comparsas na ação, a família retirou-se para Rio Bonito, interior do Estado do Rio de Janeiro, onde se estabeleceram em pequena chácara.
A débâcle deixou cicatrizes profundas, em todos.


Lelé e Sinhazinha com a filha Marildes.
1938/1939. Niterói (RJ).

Lelé e Sinhazinha se fixaram em São Gonçalo (RJ), região metropolitana de Niterói, a então capital fluminense, em 1938. O local é município antigo da Província Fluminense e teve na pessoa do Barão de São Gonçalo (1791-1873) seu grande apogeu político, nas décadas de 1850 e 1860. Durante os anos 1920 e 1930 recebeu levas de migrantes dos diferentes êxodos rurais, tanto do próprio interior do Estado, quanto de outros rincões brasileiros. A cidade estava longe de ser o que é hoje, uma urbe desordenada e em grande parte insalubre; tratava-se da vizinha de Niterói, onde o custo de vida era alto, por ser capital, e se constituía em uma alternativa semirrural aos que vinham do campo.
O primeiro filho de Sinhazinha e Lelé, Sebastião Antunes de Cerqueira — o nome de família passou a ser a junção do primeiro nome paterno da mãe, Antunes, com o Cerqueira, pois ela rejeitava peremptoriamente que seus filhos se chamassem Siqueira de Cerqueira — foi bebê enfermiço. Nascera em 8 de janeiro de 1936 e falecera meses depois, vitimado pela desidratação (!). O segundo filho foi Marildes, nascida em Bom Jesus no 1º de janeiro de 1937; o terceiro foi o temporão Antonio, nascido em 16 de dezembro de 1949, em São Gonçalo, e a última foi Maria da Graça, nascida em 25 de maio de 1954, no Hospital Universitário Antonio Pedro, recém-inaugurado em Niterói pelo Presidente Getúlio Vargas.
Dos píncaros de uma sociedade pequena e rural para a vida nos arredores da capital de seu Estado, a vida se mostrou duríssima para o casal. Lelé fora aluno do célebre Colégio Bittencourt, de Campos dos Goytacazes, que reunia quase todos os filhos das classes dirigentes do Norte Fluminense. Contudo, acompanhou seus irmãos mais velhos nas inúmeras fugas que intentavam, retornando a Bom Jesus e teimando em não estudar; algo que certamente causava cizânia entre Sô Quinca Cerqueira e Sá Jozina... O resultado foi que na clivagem profunda que separa os que recebem e os que não recebem educação formal, em pleno Brasil da República Velha e da Era Vargas, Lelé se tornou um operário, literalmente um torneiro mecânico, pois que adorava mexer com ferramentas, madeiras e outras peças manuais.
Essa é uma parte da psique de meu avô que jamais pude compreender. Como não o conheci — ele morreu quando eu tinha 7 anos —, apenas pelos relatos de sua viúva, nunca entendi o porquê de sua radical opção por algo tão “desaristocratizante”. Lembremos que os antigos códigos morais da nobreza lusitana ditavam que apenas um trabalho braçal não fazia com que se perdesse a “condição fidalga”: lavrar terras. Todo o resto era considerado vexaminoso e, em especial, as atividades mecânicas eram tidas por desonrosas. Por mais arcaico e absurdo isso nos pareça em pleno século XXI, é óbvio que às mentes de Lelé e Sinhazinha e sua parentela nada disso passava despercebido, ainda que as filigranas de legislações nobiliárquicas avoengas lhes fossem completamente alheias.
Por outro lado, sabendo do gosto enorme por máquinas e engrenagens que tinha o jovem Lelé é de se imaginar que, se letrado, pudesse ter sido engenheiro mecânico, mas não tendo seguido a vida acadêmica normal, foi-lhe impossível essa via. Também não se deve desprezar o fato de que, segundo Sinhazinha, Lelé sempre destoou muito de seus familiares, no quesito “orgulho de casta”, o que vale dizer que não era aristocracista[8] . Ele era um dos filhos de Sô Quinca que mais se dava com os colonos, preferindo comer no meio deles quando das matanças de animais (bois, porcos, cordeiros, aves) que regavam, comumente, as festas da fazenda. Causava-lhe tanto asco ver esse espetáculo mórbido que passou toda vida comendo cereais e legumes com frango ou peixe, tout court.
Lelé tinha uma personalidade um tanto rude, é inegável. Enquanto Sinhazinha abraçou com afinco seus dotes manuais artísticos, tornando-se exímia costureira e sabendo como ninguém bordar, crochetar, tricotar, o marido queria apenas e tão-somente voltar-se para a Companhia Brasileira de Usinas Metalúrgicas, ramo da norte-americana Hime and Comp., instalada no distrito de Neves, em São Gonçalo.
Sobre o papel que o ofício escolhido por Sinhazinha exercia na vida dos “parentes pobres” das diferentes oligarquias, diz Sérgio Micelli em “Poder, sexo e letras na República Velha” (São Paulo: Perspectiva, 1977):

A costura possibilita aos “parentes pobres” o acesso às famílias dominantes de sua classe de origem, com tudo o que tal proximidade implica em termos de prospecção de postos e de carreiras disponíveis para seus filhos e para si mesmos. Tendo em vista que o trabalho feminino e seus produtos (educação dos filhos, trabalhos domésticos, trabalho de costura etc.) são desvalorizados, o capital de relações propicia lucros ainda menores quando, como no caso de Humberto, o recurso à oligarquia se faz por intermédio da mãe. A costura simboliza a própria relação em falso dos “parentes pobres” com a oligarquia, vale dizer, o “gosto” constitui o único bem que lhes sobrou de sua convivência com ela. Os bens produzidos pelo trabalho manual feminino — como, por exemplo, a costura — apresentam inúmeros traços comuns com os bens simbólicos em geral, na medida em que sua produção exige uma competência que só pode ser adquirida pela posse de um habitus de classe apropriado, isto é, por uma mesma origem de classe. O “gosto” e os contatos sociais requeridos pelos trabalhos de costura encomendado pela oligarquia pressupõem o domínio prático de todo o estilo de vida dessa classe. (...) Por exigir muitos cuidados, minúcias e um bom acabamento, condições indispensáveis para produzir diferenças mínimas, a costura é ao mesmo tempo a mediação prática pela qual um dado agente interioriza a experiência do declínio (em especial, a perda do capital econômico) e por meio da qual um novo projeto, a vocação intelectual pode concretizar-se pela feminização da família e da criança.

Embora rígida em matéria de moral e costumes, Sinhazinha adorava as idas ao Cassino da Urca, em geral na companhia de seu irmão mais velho, o Major Siqueira (Braz Antunes de Siqueira), o qual inclusive parece que combateu na II Guerra Mundial. Outro fator de diversão imensa dela eram as idas à Rádio Mayrink Veiga e à Rádio Nacional, nos “anos dourados”. Conheceu de perto e tietou um sem-número de grandes cantores, radialistas, atrizes e atores.
Desde as radionovelas, era uma fã incondicional desse gênero artístico e conhecia a biografia de muitos dos grandes intérpretes. Nos últimos anos de vida, contudo, perdeu o vigor no apreço pelos rocamboles globais; considerava tudo muito decadente e erotizado, o que lhe incomodava. Vovó deixou pencas de fotos autografadas e bilhetes dessas personagens, misturadas às fotos de família... o que me faz pensar no forte desejo de ter pertencido, de alguma forma, àquele mundo de glamour. Talvez exatamente por isso me tenha dito, várias vezes, quando criança, que eu poderia ser ator. Quando, porém, na adolescência, externei a vontade de ser padre, já que sempre me identifiquei enormemente com a Igreja onde nasci e cresci, ela foi a maior entusiasta, desde o início. Nem o sabia, mas descendia por vias colaterais de dezenas de sacerdotes...
Apesar de não ser gorda, era glutona, e devorava uma caixa de sorvete de flocos durante o prazo de um dia... Preferia imensamente doces a salgados. No trato com as empregadas, que preparavam-lhe as guloseimas, nunca era ríspida, mas sempre autoritária, docemente autoritária, devo dizer... Aliás, nesse quesito, é forçoso reconhecer como nela o amor e a autoridade, a afetuosidade e a autocracia, se coadunavam de modo impressionante.
Minha avó tinha uma inteligência aguçada e um víeis cômico latente. Mal sabia ela que seu avô, Felício Antunes de Siqueira, antigo fiscal da Câmara Municipal de Ubá, fora o primeiro empresário circense de todo Norte Fluminense, no século XIX. Mas ela nem sonhou em conhecer o pai de seu pai. Afinal, quando Sinhazinha nasceu, Antonico estava com 65 anos...
Junto a Sinhazinha e seus filhos foi viver a idosa Maria Amélia, venerada por toda sua numerosa descendência. Suas filhas mais velhas fizeram bons casamentos, para a época, e as filhas delas também. Entre as netas de Maria Amélia com as quais a tia Sinhazinha se dava muito bem estavam Arlette (1920) e Arleida (1924); a primeira, com o marido Raul Gilberti, é a madrinha de Maria da Graça; a segunda, com o marido Miguel José Cassab (1916-1997), é a madrinha de Antonio.
Raul Gilberti (1914-1981), capixaba de Colatina, graduou-se em Medicina no Rio de Janeiro e voltou à terra natal para a política local. Foi vereador e presidente da Câmara Municipal de Colatina (1950-1954), prefeito (1956-1959) e vice-governador do Estado do Espírito Santo (1958-1962). Eleito Senador da República em 1962, ficou na casa até 1971.
Maria Amelia de Siqueira — era assim que se assinava —, devota de Maria Santíssima, São José e Santo Antônio, foi uma ativa paroquiana da comunidade de Nossa Senhora das Graças, em Porto Velho, distrito de Neves, Município de São Gonçalo. O histórico dessa paróquia aponta que em 1942 um grupo de moradores, mormente senhoras, se reuniu para construir uma capela onde o vigário de Santo Antônio, na Covanca, pudesse celebrar aos domingos e dias santificados. Cinco anos depois, quando o Papa Pio XI (1857-1939) canonizou S. Catarina Labouré (1806-1876) deu-se o início da construção da cripta, com dinheiro de gente de toda parte. Maria Amelia foi uma das chefas desse movimento e pediu a Sinhazinha que se tivesse mais uma filha a chamasse “Maria das Graças”, o que se deu em 1954, tendo Lelé optado, contudo, por “Maria da Graça”.
O desaparecimento de Maria Amélia, extremamente simbólico, deu-se uma década depois. Era o dia 13 de junho de 1965. Durante a procissão de S. Antônio, naquela comunidade de Neves, em São Gonçalo, todos assistiam curiosa e piedosamente à aproximação do andor, carregado pelos varões católicos. Quando o andor passou em frente à casa de Lelé e Sinhazinha, Maria Amélia expirou... Zelson Tardin, filho de Bezica, gritou: “Vovó morreu!” e todos foram para o quarto beijar a mão da queridíssima matriarca. Com ela morria também grande parte do passado profundamente rural daquela imensa progênie.
Os filhos de Sinhazinha e Lelé e os demais netos e bisnetos de Maria Amélia tiveram, todos, acesso a boa educação e se encaminharam, uns para a vida acadêmica, outros para o mundo da Medicina, do Direito, das profissões liberais etc.
Como exemplo, temos na atual Colatina o cardiologista Antonio Tadeu Tardin Giuberti, filho de Raul e de Arlette. Antonio Giuberti já foi o prefeito do município em dois mandatos: 1983-1988 e 1993-1996.
Na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), a assistente social Maria Aparecida Tardin Cassab (1956) leciona na Faculdade de Serviço Social. No Museu de Ciências da Terra, do Departamento Nacional de Produção Mineral, atua a paleontóloga Rita de Cássia Tardin Cassab (1948), irmã da anterior.
Na Universidade Federal Fluminense (UFF) coordena o departamento de Patologia Clínica da Faculdade de Medicina a bioquímica Maria da Graça Antunes de Cerqueira Saback Sampaio, minha tia. Sua irmã mais velha, Marildes, contadora e advogada, foi servidora de carreira do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro.
Meu pai, Antonio Antunes de Cerqueira, casou-se em 1974, na Basílica de Nossa Senhora Auxiliadora (casa-mãe dos Salesianos do Brasil) em Niterói, com Leila Maria Souza da Silva (1949), natural de São Pedro da Aldeia. Antonio é professor aposentado de Música, de Português e de Inglês; lecionou durante mais de trinta anos em diversos colégios católicos de Niterói. Leila, que foi professora primária, é assistente social e servidora aposentada do INSS. Eles geraram Antonio Júnior (1975), Bruno (1979) e Cristiano (1980); divorciaram-se em 1987.



Dona Maria Amélia da Conceição Antunes de Cerqueira e o 

neto Bruno e Dona Juracy Baptista de Souza da Silva

e o neto Cristiano. Santa Rosa, Niterói (RJ), 1981.



Meu irmão Cristiano (professor de Educação Física, treinador paralímpico e oficial de Marinha) já me deu a sobrinha-afilhada Luana de Souza Cerqueira (2001) e Manuela (2013); meu irmão Antonio Júnior (servidor da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro), os sobrinhos João Pedro Araújo Antunes de Cerqueira (2004) e Maria Eduarda Araújo Antunes de Cerqueira (2006).


Dona Sinhazinha, seus filhos e netos, na entrada do Ed. Mônaco.
Icaraí, Niterói (RJ), 1990.


E como findou-se o casamento de Lelé e Sinhazinha? Com a morte do marido, em 27 de setembro de 1986, em Niterói, em conseqüência de um derrame. Ele sofrera durante seus últimos anos de esclerose, doença que pude observar, em pesquisa, acometer um bom número de familiares e parentes dele. Por causa da doença e do aspecto violento que ela trazia a suas reações, fora internado em uma casa de saúde bastante lúgubre, em Rio Bonito, onde o visitávamos amiúde.
Que descansem em paz meus queridos avós paternos. Rabiscando estas poucas linhas e as esparsas pesquisas que as embasam, homenageio Vovô Lelé e Vovó Sinhazinha, inclusive por fazer algo que sempre foi sonho dela: escrever sua vida...

Bruno da Silva Antunes de Cerqueira*

Brasília, 15 de janeiro de 2014
(97º aniversário de nascimento de Sinhazinha)






[1] Não sei informar se existe parentesco entre os Teixeira-de-Siqueira e os Antunes-de-Siqueira. Não deixa de ser interessante que muitos dos netos de Antonico Antunes se referissem à mulher do avô como “a Prima”, segundo me contaram sobrinhas de minha avó. Mas isso podia ser mera usança. Outro enigma genealógico para mim constitui saber se o Visconde de Itabapoana, Luiz Antonio de Siqueira (1796-1879), coronel da Guarda Nacional, tinha alguma conexão com ambos os clãs...
[2] “Entrelaçamento Genealógico” é justamente o livro que o Engenheiro José Côrtes Sigaud (1896-1951) escreveu para dar conta dos casamentos entre os Côrtes, os Figueiredo, os Sigaud, os Antunes de Siqueira, os Guedes, os Villas-Boas, os Couto, os Teixeira Leite et alii. A obra foi publicada postumamente, pelo General Agostinho Teixeira Côrtes, em 1968.
[3] Sinhazinha e Pequetita, amigas de vida inteira, jazem enterradas uma em diagonal à outra, no Cemitério do Parque da Colina, em Niterói...
[4] A última pessoa a estar com ela antes do momento derradeiro fui eu, quem a levou para o CTI junto com os maqueiros. Eu sabia que não mais a veria viva, embora jamais estejamos plenamente preparados para isso. Já vertendo lágrimas, eu lhe disse “Vó, tudo com Nossa Senhora!” e me retirei, sob as ordens dos funcionários do setor. Algumas horas depois, às 15h daquele Domingo, eles anunciaram que ela havia morrido...
[5] O nome me intriga: seria prenúncio do que ocorreria com seu núcleo familiar...?
[6] A morte de Sô João Ribeiro também me foi contada por Vovó diversas vezes. Enquanto ofegava, todos rezavam a sua volta e ele dizia “Jesus está vindo! Vinde Senhor Jesus!”. E partiu...
[7] Algo em torno de 40 milhões de reais, segundo alguns dados econômicos — cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%A9is. Contudo, se o valor aquisitivo da liquidez dos bens for aferido, a soma tende a ser consideravelmente superior.
[8] Conforme costumo ressaltar, aristocracismo difere conceitualmente de aristocracia. É um conjunto de atitudes e comportamentos que repugna particularmente aos pensadores gramscianos. O ethos aristocrático valoriza a honra, a glória, a nobreza, mas enaltece e propugna a solidariedade, a fraternidade, a caridade social. O aristocracismo é o orgulho desmedido pelas origens e pela condição social superior, e aparta-se completamente da realidade circundante. Aplicando-se as filosofias tanto de Karl Marx (1818-1883), quanto de Sigmund Freud (1856-1939) — que se alimentam, em grande medida, do judaico-cristianismo —, é uma das formas mais aparentes da alienação.

* Bruno da Silva Antunes de Cerqueira é graduado em História na PUC-Rio, pós-graduado em Relações Internacionais pelo Iuperj/Ucam, bacharelando em Direito no UniCEUB. É indigenista especializado da Fundação Nacional do Índio (Funai). Fundou e gere o Instituto Cultural D. Isabel I a Redentora (www.idisabel.org.br); é sócio e foi diretor de publicações do Colégio Brasileiro de Genealogia (www.cbg.org.br). É membro do Instituto Histórico e Geográfico de Niterói. 










quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Artigo – Por que reis e presidentes choram?




Artigo – Por que reis e presidentes choram?

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Bruno de Cerqueira*
o
Acabam de morrer mais de vinte crianças inocentes, rajadas pelas balassatânicas de um norte-americano em Newtown, Connectcut.
Ao saber da notícia e reportá-la em seu discurso oficial de condenação ao trágico acontecimento à Nação, o Presidente Barack Obama chorou.
Semelhante impulso teve nossa Presidenta Dilma Rousseff quando falou à Nação Brasileira pelo ocorrido com 12 criancinhas da Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, no Rio de Janeiro, em abril de 2011.
Da mesma forma ocorreu com o Rei Harald V e a Rainha-Consorte Sonja da Noruega em julho de 2011, quando na Catedral de Oslo rezaram e choraram com as famílias norueguesas a perda de 85 vidas, pelo diabólico esquema idealizado por Andrés Breivik.
Quando Dilma Rousseff se dirigiu aos compatriotas chamou os mortos de “brasileirinhos e brasileirinhas” — fórmula que aprecia —, e chorou. Nem sabe ela que sua antecessora na chefia do Estado Brasileiro, a Princesa Imperial Regente D. Isabel (1846-1921), também se referia assim aos seus queridosfilhos, que ela teve de deixar órfãos em novembro de 1889, quando foi banida do país por alguns militares e republicanos.
Por que os monarcas e presidentes choram quando falam a seus povos nesses momentos? Seria mais uma das inumeráveis encenações de que a vida em sociedade e, mormente, a vida em política, engendra? Ou seria algo sincero, bastante humano e, simultaneamente, algo próprio da primitiva e antigaimagem residual do pai/mãe que perde seu filho? Fico com a última hipótese.
Sejam os reis que ainda existem pela terra, ou seus “sucessores” presidenciais nos países que optaram por eleger chefes de Estado e chefes de Governo, todos se sentem “pais dos povos”, uma vez assentes em seus tronos ou cadeiras monárquicas. São todos monarcas, lato sensu, e paternais/maternais. Difícil e, a meu ver, impossível, escapar disso.
Não há ditador, de esquerda ou de direita, na História, que tenha deixado de se sentir assim também. Para o bem e para o mal, homens e mulheres que comandam as Nações, estejam elas sob regimes autoritários ou democráticos, sentir-se-ão seus pais/mães. O peso dessa carga não é desprezível. Ela inclui a angústia/culpa/concernimento das relações parentais e filiais e conforma ummodus operandi no qual a dor das perdas e o regozijo das conquistas tem de ser sentido e demonstrado. Sem dúvida alguma, subjetivamente, haverá os choros mais sinceros e aqueles que carecem de “verdade sentimental”. O problema é que não há certificabilidade nessa seara…
Os chefes clânicos, desde a Antiguidade mais remota, sempre exercerem autoridade, poder e dominação sobre seus filhos, netos e parentela. Em Totem e Tabu, Sigmund Freud (1856-1939), citando Sir James Frazer (1854-1941) e Northcote W. Thomas (1868-?), nos fala do mana (poder misterioso e mágico) exercido por reis e chefes por séculos e séculos entre os polinésios e oceânicos em geral. Dessa herança mental de longa-duração — diria o historiador Fernand Braudel (1902-1985) — não é possível livrar-se apenas com teorias secularistas e laicistas que negam a força da origem religiosa e sacral do Estado e, por conseguinte, da pessoa em quem ele está maximamente investido.
Muitos cientistas políticos defendem que Niccolò Machiavelli (1469-1527) teria inaugurado o Estado Moderno justamente retirando de seu chefe a condição patriarcal-paternal e atribuindo-lhe a função exclusiva de gestor/executor/mantenedor da comunidade “nacional”. Ressaltam que a pedagogia maquiaveliana prescreveu aos príncipes modernos serem bem mais condutores calculistas do que chefes paternais. Sim, alterações profundas se processaram no que tange à governança dos povos do Medievo para a Modernidade. Mas como em tudo que é humano, as permanências e continuidades falam tão alto quanto as rupturas.
O professor emérito da Universidade de Cornell (Estado de Nova York, EUA) Benedict Anderson, por exemplo, é um dos teóricos que acentua o fator “imaginado” e “imaginário” de toda nação, apontando-a com o construto histórico de elites políticas que desejavam manter suas estruturas de poder seculares, ainda que, na Contemporaneidade, essa dominação possa prescindir de fatores religiosos, dinásticos e sacralizantes em geral.
Contudo, permanecemos a assistir hodiernamente o fenômeno do choro público dos chefes de Estado quando seus filhinhos são barbaramente assassinados pela sanha de algum sociopata de plantão, ou quando pereçam em alguma tragédia acidental ou natural.
O antropólogo norte-americano Clifford Geertz (1926-2006), citando o historiador Ernst Kantorowicz (1895-1963), nos lembra no cap. Centros, reis e carisma: uma reflexão sobre o simbolismo do poder, de seu Saber Local, que “o desejo de um rei é profundamente universal”. Parafraseando-o, podemos dizer que sua dor também ecoa no cosmos. A dor do chefe de família (homem/mulher) que perde seu filho é, de um ponto de vista nacional, a dor de um chefe de Estado que perde seus pequenos compatrícios.
Nesse sentido, nada mudou.
Junto com esses chefes nacionais é bem o caso de suplicar que o Espírito Consolador afague os corações de centenas de famílias que choram seus mortos, nos Estados Unidos, na Noruega, no Brasil e no mundo.
*Bruno de Cerqueira (33) é historiador, monarcólogo, especialista em Relações Internacionais, professor de Cerimonial e Protocolo, indigenista especializado (analista) da FUNAI e gestor do IDII.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Artigo - Os Orleans e Bragança próximos do poder… em Portugal e na Sérvia



Os Orleans e Bragança próximos do poder…
em Portugal e na Sérvia

Bruno de Cerqueira*
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A terrível crise econômica e política por que passa a pátria-mãe lusa dos brasileiros faz reacender em muitos ambientes a discussão sobre a restauração – ou reinstalação, para os que não partilham de uma visão passadista – da monarquia portuguesa, na figura do chefe da Casa Real e, de jure, dinasticamente, Rei D. Duarte III de Portugal, conhecido em todo o país como Duque de Bragança, um dos muitos títulos que possui D. Duarte Pio, nascido em 1945, na Suíça, quando a lei de banimento dos Bragança ainda imperava na República Portuguesa… 
D. Duarte Pio João Miguel Gabriel Rafael de Bragança e Orleans e Bragança, afilhado de batismo do Papa Pio XII (1876-1958), é o primogênito de D. Duarte Nuno (1907-1976), Duque de Bragança e neto e sucessor de D. Miguel I, o desditoso irmão de nosso D. Pedro I, e de D. Maria Francisca (1914-1968), nascida princesa de Orleans-e-Bragança, neta da Redentora. 
Ele casou-se na festa de Nossa Senhora de Fátima, em 13 de maio de 1995, em uma megaevento televisionado para Portugal e quase todos os países lusófonos, no Mosteiro dos Jerônimos, com a nobre portuguesa D. Isabel Inês de Castro Curvello de Herédia, da Casa dos Viscondes de Ribeira Brava, uma linhagem de administradores dos territórios insulares portugueses de Açores e Madeira. O casal (Casal Real para os portugueses ditos “monárquicos”) gerou os almejados três herdeiros da Coroa: o Príncipe da Beira, D. Afonso de Santa Maria (1996), a Infanta D. Maria Francisca Isabel (1997) e o Infante D. Diniz de Santa Maria (1999). 
D. Duarte, um bisneto de D. Isabel I que costuma definir Portugal como sua “pátria” e o Brasil como sua “mátria”, goza de uma estima considerável entre os habitantes do outrora Reino de Portugal e Algarves e seus antigos domínios coloniais, aí incluindo nosso País. Desde adolescente, ele visitou o Brasil inúmeras vezes, conheceu a Amazônia, encontrou e travou contato com muitas tribos indígenas; nesse ínterim, é válido salientar que ele e seu primo-irmão brasileiro, D. João Henrique, têm o espírito do avô, D. Pedro de Alcantara (1875-1940) e do tio-avô, D. Luiz (1878-1920), que adoravam as viagens, as expedições, os desbravamentos. 
Pois bem, em 5 de outubro de 2012 as autoridades portuguesas celebraram os 102 anos da proclamação de sua República, sem manifestações populares. A República Portuguesa, quando foi proclamada, em 1910, depôs D. Manuel II (1889-1932), jovem rei alçado ao trono pelo assassinato de seu pai e seu irmão no famoso Regicídio do Terreiro do Paço, em Lisboa, dois anos antes. Até hoje essa incruenta passagem da história lusa produz em poetas e escritores portugueses pró ou contra a monarquia textos candentes. A comemoração republicana exibiu cenas inusitadas: o Presidente Cavaco Silva empunhou a bandeira nacional de cabeça para baixo na Câmara Municipal de Lisboa e uma desempregada em pânico invadiu a festa e protestou contra a crise que assola o país. Tudo isso assistido por menos de 40 populares… (http://www.ionline.pt/portugal/5-outubro-cerimonia-marcada-bandeira-hasteada-ao-contrario). 
O último Bragança-Saxônia-Coburgo-Gotha reinante em Portugal, D. Manuel II,  morreu sem descendência em seu exílio inglês e parece ter deixado claro que os direitos dinásticos ao trono passariam ao ramo “miguelista” da Casa de Bragança, na pessoa de seu primo-sobrinho, D. Duarte Nuno, já citado. Casando-se com a prima brasileira (do ramo “constitucionalista” dos Bragança) em 1942, na catedral petropolitana, e dela gerando três filhos, D. Duarte Nuno afirmou-se como rei titular da quase totalidade dos monárquicos portugueses. Ele morreu em dezembro de 1976 e seu filho, igualmente D. Duarte, tornou-se o chefe da Casa e king-to-be. 
O príncipe serviu como piloto da Força Aérea Portuguesa em Angola entre 1968 e 1971, diplomou-se em agronomia em Lisboa e cursou a pós-graduação de Desenvolvimento Econômico da Universidade de Genebra. Se um plebiscito for proposto em Portugal para decidir se quer ou não D. Duarte como chefe de Estado vitalício e hereditário pode ser que algo surpreendente destitua ostablishment português e o mundo ouça falar em “volta da monarquia”, como se deu no Camboja, em 1993. 
Na festa republicana acima citada, ao tempo em que o Presidente Cavaco Silva falava aos políticos, D. Duarte de Bragança falava a centenas de monárquicos, no Palácio da Independência (antiga sede da Casa de Almada); leu um manifesto à Nação, em que critica duramente os sucessivos governos que têm administrado Portugal no parlamentarismo da “III República Portuguesa” (1974- ), considerando muitos de seus mandatários como irresponsáveis e corruptos. 
Aos analistas internacionais, em geral bem despreocupados com o assunto, fica a dica: acompanhem mais de perto os sucessos de D. Duarte e seus seguidores… 
Passando ao outro extremo europeu, vamos para o leste, mais precisamente os Bálcãs, terra de deliciosas paisagens, mas também de terríveis histórias bélicas. O antigo “barril de pólvora” da Europa está hoje bem mais pacificado, com seus povos tentando, a duras penas, o soerguimento e a reconstrução nacional. Do outrora Reino da Iugoslávia (literalmente, terra dos eslavos do sul), resta hoje apenas a República da Sérvia, país cuja dinastia nacional (a Casa de Karadjordjevic, ou seja, os descendentes do herói Karadjordje) forjou esse Estado entre o XIX e o XX, aproveitando-se do fim dos Impérios Turco-Otomano e Austro-Húngaro na I Guerra Mundial. As atuais repúblicas da Croácia, da Macedônia, da Eslovênia e, por fim, do Montenegro, todas promoveram a secessão do antigo estado dos Karadjordjevic que foi mantido durante os anos de comunismo (1946-1989) com a mão de aço do Marechal Josip Broz Tito (1892-1980), um socialista considerado “lhano” perto de seus vizinhos sanguinários da Cortina de Ferro. Isto sem falar da Bósnia-Herzegovina, hoje uma federação independente, mas de triste memória – sua capital, Sarajevo, foi palco do estopim da I Grande Guerra e de lutas fratricidas no anos 1990. 
Em 1991, o herdeiro do trono sérvio, Aleksandar Karadjordjevic, nascido em 1945 em uma suíte do hotel londrino Claridge´s, declarada especialmente território iugoslavo pelo Governo Britânico (princípio da extraterritorialidade), finalmente pisou o solo de Belgrado, para ele e sua família considerado sagrado. Conhecido como Aleksandar II, desde que seu pai morreu no exílio, em Illinois (EUA), é pentaneto de D. Pedro I, uma vez que sua avó paterna, a Rainha Marija (1900-1961), nascida princesa da Romênia, era neta da Infanta D. Antonia de Portugal, filha de D. Maria II… 
O príncipe – em linguagem técnica de genealogia dinástica “Sua Alteza Real o Augusto Senhor Aleksandar, Príncipe-Chefe da Casa Real da Sérvia etc.” – é o filho e sucessor do Rei Petar II da Iugoslávia (1923-1970), um afilhado de batismo do rei britânico George V (1865-1936), que não pôde contar com a ajuda das tropas do Reino Unido quando da deposição e do banimento, ao término da II Guerra Mundial. Ainda assim, ele exilou-se em Londres, onde nasceu-lhe o filho, que foi batizado por ninguém menos que o Rei George VI e sua filha-herdeira, Princesa Elizabeth, na Abadia de Westminster. O vídeo desse batizado histórico pode ser acessado na página oficial da dinastia real sérvia (www.royalfamily.org). 
Aleksandar teve uma infância complexa, visto que sua mãe, a Rainha Aleksandra (1921-1993), nascida princesa da Grécia e da Dinamarca, era instável emocionalmente. Foi criado pela avó Marija e enviado ao internato suíço Le Rosey. Depois, recebeu ampla formação militar na academia norte-americana de Culver e na britânica Mons Office Cadet School. Da parte de sua “royal godmother” recebeu sempre bastante afeição e, por este motivo, esteve presente em todos os eventos da Família Real britânica, sobretudo no período em que viveu em Londres. Isto inclui, óbvio, ter assistido ao enlace do Príncipe de Gales com Lady Diana Spencer, tanto quanto ao mais recente, do Príncipe William com Miss Kate Middleton. 
Casou-se em 1972, no palácio de Villamanrique de la Condesa, próximo de Sevilha, na Espanha, com a Princesa D. Maria da Glória de Orleans-e-Bragança, nascida em Petrópolis em 1946. O príncipe, que se estabeleceu como empresário nos Estados Unidos e na Espanha, chegou a passar temporadas em Petrópolis e no Rio de Janeiro. 
Ele e D. Maria da Glória tiveram três filhos: o herdeiro, Petar (1980) e os gêmeos Filip e Aleksandar (1982). De maneira que esses três príncipes da Sérvia são trinetos da Redentora e duplamente descendentes de D. Pedro I. Se o mais velho deles vier um dia a ser rei, será chamado de “Petar III”, o que significa “Pedro III da Sérvia”… 
Divorciando-se de D. Maria da Glória em 1985, ambos anularam o casamento: ele obteve do Patriarca da Igreja Ortodoxa Sérvia a anulação e ela da Sacra Rota Romana. 
Aleksandar II uniu-se à cidadã grega Katherine Batis, filha do megaempresário Robert Batis, mas não gerou filhos. A princesa brasileira desposou D. Ignacio de Medina y Fernandez de Córdoba, duque de Segorbe etc., um dos filhos da Duquesa de Medinacelli, D. Victoria Eugenia de  Fernandez de Córdoba y Fernandez de Henestrosa. A Casa de Medinacelli é a dinastia ducal-principesca espanhola que, juntamente com a Casa de Alba, constitui a mais alta classe sócio-genealógica do país, diretamente abaixo da Casa Real (dinastia Borbón, ou Bourbon, no original francês). 
Após a queda de Slobodan Milosevic (1941-2006), em outubro de 2000, os ventos democráticos proporcionaram aos príncipes da Sérvia não somente retornar em definitivo ao país, como advogar no Judiciário nacional o retorno de suas propriedades, confiscadas pelos comunistas em 1947. O antigo palácio real de Belgrado (chamado de “Palácio Branco”) e outras casas foram devolvidos aos Karadjordjevic, que residem oficialmente na capital desde julho de 2001. 
A família trabalha incessantemente pela instalação da monarquia constitucional-parlamentar no país. Aleksandar II e sua consorte, Princesa Katherine, usam de forma profícua a networking que construíram ao longo dos anos; os jovens príncipes, desportistas e guapos, fazem grande sucesso entre os jovens. 
Em 4 de outubro de 2012, os Karadjordjevic conseguiram fazer com que o governo da Sérvia repatriasse os restos mortais do Príncipe Pavle (1893-1976) e de sua mulher, Olga (1903-1997), nascida princesa da Grécia e da Dinamarca. O Príncipe Pavle da Iugoslávia foi o regente do Reino na menoridade do primo, Petar II, de outubro de 1934 a março de 1941. As cerimônias de Estado foram co-presididas pelo Presidente da República, Tomislav Nicolic, e o Príncipe Aleksandar, cabendo a condução dos ofícios sacros ao Patriarca Irinej I, supremo líder dos ortodoxos sérvios e um filo-monarquista declarado… 
É curioso notar que tanto em Portugal, quanto na Sérvia, as bandeiras nacionais restauraram os antigos brasões reais há mais de uma década. Pesquisas de opinião recentes mostram aumento significativo de simpatia pelo parlamentarismo monárquico em ambos os pequenos Estados. 
Uma fina ironia perpassa a possibilidade desses “Orleans e Bragança” de Portugal e da Sérvia retornarem ao poder. Eles pertencem ao que a imprensa brasileira chama de “ramo de Petrópolis da família imperial brasileira”. D. Duarte é o sobrinho e os meninos Petar, Filip e Aleksandar os netos do falecido D. Pedro Gastão (1913-2007), príncipe-titular de Orleans-e-Bragança. 
No Brasil, o ramo de D. Pedro Gastão e o ramo de D. Pedro Henrique (1909-1981) permanecem separados e o monarquismo certamente não é suficiente para uni-los. As causas de desunião são antigas e não dizem respeito, como muitos pensam e dizem, a direitos dinásticos. Trata-se do problema da herança das propriedades petropolitanas de D. Isabel. 
Em 1946, o príncipe-chefe da Casa Imperial do Brasil, D. Pedro Henrique, perdeu para seu primo a causa em que defendia a anulação do negócio jurídico de venda das ações da Companhia Imobiliária de Petrópolis durante a II Guerra Mundial; advogou para ele o renomado civilista carioca Carlos de Saboia Bandeira de Mello (1890-1963). Contudo, a Justiça do Rio de Janeiro deu ganho de causa a D. Pedro Gastão e desde então a briga entre eles jamais cessou. Pois a contenda girava em torno do laudêmio resultante da enfiteuse do Centro Histórico de Petrópolis, cujos dividendos vão exclusivamente para o ramo primogênito de D. Isabel, enquanto o ramo secundogênito, especificamente a família de D. Pedro Henrique e D. Maria da Baviera (1914-2011), ficou em situação de quase-penúria. A irmã de D. Pedro Henrique, D. Pia Maria (1913-2000), casada com o conde francês René de Nicolaÿ, nunca passou apertos. 
A questão é complexa e não se restringe a uma história de “mocinhos” e “bandidos”. Para aumentar as desavenças, acresceu-se a vontade manifesta por D. Pedro Gastão, durante toda sua vida, de negar o ato de renúncia ao trono assinado em 1908 pelo primogênito de D. Isabel, seu pai. 
Por desejarem, D. Isabel e o marido, que seu herdeiro se unisse a uma moça de “família régia”, i.e., uma casa principesca reinante ou ex-reinante, eles convenceram D. Pedro de Alcantara a renunciar aos seus direitos sucessórios, no que concernisse ao Brasil, passando-os a D. Luiz. Na recente biografia deste príncipe, a historiadora paulista Teresa Malatian explicita que a renúncia não se deve exclusivamente a fatores genealógico-dinásticos, pois D. Luiz tinha muito mais interesse numa eventual restauração monárquica brasileira do que D. Pedro. Este, contudo, se sentia muito brasileiro e sofria com os desejos do pai, que o manietava no sentido de se assumir como “Príncipe Pierre de Orleans” e futuro “Conde de Eu”. 
A união de Isabel, princesa de Bragança e Gaston, príncipe de Orleans, celebrada em 15 de outubro de 1864, deu origem à Casa de Orleans-e-Bragança, que teria sinonímia com a Casa Imperial do Brasil se o casal tivesse reinado como D. Isabel I e D. Gastão (imperador-consorte) e o primogênito de ambos (D. Pedro) tivesse se tornado D. Pedro III. Nada disso ocorreu. 
Em 1908, após assinar a renúncia por si e os eventuais descendentes, D. Pedro casou-se com a Condessa Elisabeth Dobrzenska de Dobrzenicz (do Reino da Bohêmia, império habsbúrgico) e seu irmão-herdeiro, D. Luiz, desposou a Princesa D. Maria Pia das Duas Sicílias, princesa de Bourbon. Desses casamentos nasceram cinco crianças, do primeiro, e três do segundo. Todos receberam, na França, o nome civil de “Orléans-Bragance” ou “Orléans et Bragance”. 
Os oito netos da Redentora (D. Pedro Henrique, D. Isabel, D. Luiz Gastão, D. Pedro Gastão, D. Pia Maria, D. Francisca, D. João e D. Thereza) foram, todos, batizados em cerimônias em que a brasilidade era exaltada, e às quais afluíam, na medida do possível, os nobres brasileiros que viviam exilados em Paris e na França. A todos se lhes reconhecia a condição de “Príncipes Brasileiros nascidos no exílio”, ainda que nossa República negasse tal pretensão. Não vou entrar nas minudências históricas da condição genealógica desses príncipes; devo afirmar, contudo, que todos se sentiam brasileiros, para além das outras identidades, mormente a francesa, que puderam gozar e/ou partilhar no curso de suas vidas. Nascidos em solo francês e trinetos do último rei do país (Louis-Philippe I dos Franceses), os príncipes de Orleans-e-Bragança eram bilíngues desde o berço, falando Português e Francês todo o tempo. 
Foram criados como verdadeiros primos-irmãos, partilhando tudo, alegrias e tristezas. O destino encarregou-se de torná-los pessoas distantes umas das outras, como ocorre em muitas famílias numerosas e tradicionais… 
No fim de 1921, estavam mortos D. Isabel e dois de seus filhos: D. Luiz e D. Antonio. Sobravam o velho Conde d´Eu, alquebrado em anos, D. Pedro com mulher e filhos e D. Maria Pia, viúva, com os filhos. No ano seguinte (1922) a Nação Brasileira comemorou os 100 anos de sua independência e a família ex-reinante foi convidada pelo governo da República a retornar ao solo pátrio e receber as homenagens. Se o Conde d´Eu era o chefe daquela família de um ponto de vista moral e de organização interna, era ao pequeno D. Pedro Henrique, de 12 anos, que cabia a honrosa situação de “herdeiro da Coroa e chefe da Casa Imperial”. Morto o Conde d´Eu em agosto de 1922, em Águas Brasileiras, suas exéquias constituíram aos pequenos Orleans e Bragança que pisavam o Brasil pela primeira vez uma boa oportunidade de sentir o calor humano das demonstrações de apreço popular àquela estimada Família. 
D. Pedro de Alcantara, com a morte do pai, é o único príncipe adulto vivo. Ele retorna à França com os despojos mortais de D. Gastão, a fim de enterrá-los no mausoléu dos Orléans, na Capela Real de São Luís de Dreux, no Vale do Loire. Resoluto a voltar a morar na sua querida Petrópolis, mas preso à França pelas propriedades da família, o príncipe-titular de Orleans-e-Bragança — era esse seu título genealógico, uma vez que não se casara morganaticamente, que jamais renunciara ao nome de família e à primogenitura da linhagem nascida do casamento de seus pais — inicia o longo processo de inventário dos genitores. Ele fica com o Castelo de Eu e a viúva de D. Luiz, sua cunhada, com o palacete de Boulogne-sur-Seine. 
Embora senhor de Eu, D. Pedro nunca quis solicitar ao primo, chefe da Casal Real da França, seu título de “Conde d´Eu”, em prova cabal de que se sentia mais brasileiro do que francês. Por outro lado, apesar de não esconder certa mágoa pela renúncia ao trono praticada em 1908, nunca a negou. Respeitou a condição do sobrinho e, enquanto viveu, aparou as eventuais arestas e rusgas que podiam nascer do incômodo familiar. 
Ele, a mulher e a cunhada preocupavam-se com o futuro das crianças. Em 1931, ele casou sua primogênita justamente com o futuro herdeiro dos Orléans, o Delfim de França, Henri (1908-1999), Conde de Paris. Após o faustoso casamento, D. Pedro resolveu voltar ao Brasil e se instalar na antiga “Casa dos Semanários”, ou seja, o palacete atrás da residência de verão de D. Pedro II, em Petrópolis, que servia de pousada aos nobres que se revezavam no “serviço do Paço”. 
Embora não fosse, de um ponto de vista dinástico, o “Príncipe do Grão-Pará”, título que a Constituição do Império (art. 105) lhe garantiu no nascimento e pelo qual foi conhecido e reverenciado durante todo o tempo em que vivera aqui, D. Pedro, em clara demonstração mais afetiva do que racional, intitulou a residência de “Palácio Grão-Pará”, nome pelo qual os petropolitanos conhecem o prédio até hoje. 
Viveu nesse solar da Região Serrana fluminense até 1940, quando morreu. Na década de 1990, D. Pedro Gastão trasladou para a Catedral de São Pedro de Alcântara os despojos do pai, bem como os da mãe, D. Elisabeth, que morrera em Portugal, em 1951. 
Se o “ramo de Petrópolis” pode reconstituir o Reino de Portugal e o Reino da Sérvia, o “ramo de Vassouras”, herdeiro do Império do Brasil, parece estar longe da possibilidade de remonarquizar os brasileiros… Ainda assim, em abril de 1993 o plebiscito previsto nas disposições transitórias da Constituição de 1988 foi realizado e a monarquia parlamentar recebeu cerca de 13% dos votos válidos, o que é um excelente resultado, dada a ampla falta de conhecimento do que represente essa forma de governo nos dias atuais, mesmo entre uma quantidade considerável de historiadores, juristas e outros cientistas sociais.
Seja como for, estão todos, príncipes e monarquistas brasileiros, rezando para que os sérvios e os portugueses coroem Aleksandar II e D. Duarte III. Será que os céus atenderão suas preces?
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Bruno de Cerqueira (33) é historiador, monarcólogo, especialista em Relações Internacionais, professor de Cerimonial e Protocolo,indigenista especializado (analista) da FUNAI e gestor do IDII.