sexta-feira, 15 de junho de 2001

A Força da Tradição: como chegaram ao séc. XX as realezas e nobrezas europeias

• Trabalho de conclusão do curso de História Contemporânea II,
ministrado pelo Exmo. Sr. Prof. Dr. Oswaldo Munteal Filho na PUC-Rio •

Bruno da Silva de Cerqueira - junho/2001

TEXTOS PRINCIPAIS:
MAYER, Arno: Introdução & Concepções de Mundo IN A Força da Tradição, Cia. Das Letras, São Paulo, s/d

PROPOSTA
Impomo-nos aqui, muito breve e sumariamente, apontar modos interpretativos dos processos históricos de derrocada das Monarquias e suas Dinastias milenares na Europa pós-I Grande Guerra.

Ainda não temos possibilidade de realizar trabalho mais séria e metodologicamente acurado; assim, o que indicaremos aqui nada mais são que idéias a serem investigadas e tornadas plausíveis de apreciação positiva por parte da academia e da comunidade científica em geral.

A questão crítica gira em torno da idéia de que há muito pouca literatura acerca do universo político, social, econômico e sobretudo, mental, das antigas formas monárquicas de organização supra-nacional na Europa de antes de 1914. Perguntas se fazem imprescindíveis.

Como viviam os povos austríaco, húngaro, tcheco, eslovaco, croata, bósnio, sérvio, etc., no seio do Império dos Habsburg-Lothringen? Como se portavam os diferentes povos alemães, de particularidades milenares, no seio do II Reich? Em que, por exemplo, diferiam os bávaros dos prussianos e como os monarcas regionais alemães aceitaram a Ordem de Bismarck e dos Hohenzollern?

Por fim, como foi possível que, findada a I Grande Guerra, fossem solapados quase todos os monarcas europeus de seus tronos? O que se seguiu a esta ordem de fatos e processos jamais imaginados? Em que tudo isso contribuiu para a ascensão dos totalitarismos?

Muito minimamente, tentaremos apontar respostas aqui.

Fica claro, no entanto, que todas essas temáticas relacionam-se estreitamente com o estudo das idéias/conceitos de Nação, Identidade Nacional, Nacionalismo, Pátria, Império, Reino, Monarquia, etc.

Acrescidas que são, quase todas essas realidades humanas de um passado histórico remoto, nada mais se propõe que perscrutar sua historicidade, revelando, ou tentando revelar, redes mais intrincadas de origem das coisas.


ANÁLISE
Em nossa breve tentativa de historicização de Populismo e Identidade Nacional na América Latina - na disciplina de História da América III -, escrevemos o seguinte:
Tivemos diferentes propostas nacionalistas neste séc. XX, nós os latino-americanos e, em particular, os brasileiros. Se algumas delas em muito se influenciavam de suas similares européias, outras tentavam, quase que obstinadamente, buscar com exclusividade no NACIONAL as fontes de seu embasamento.

Todos os nacionalismos, porém, revelam um quê de auto-afirmação, e às vezes até de superimposição, do que seja o particular nacional. Em relações com o internacional, tais propostas estão muitas vezes eivadas de xenofobia e destoam consideravelmente do que a humanidade conhecera até então: o patriotismo.
De fato, compreendemos o nacionalismo como exacerbação do patriotismo.
O Brasil conheceu vários ismos de cunho patriótico no XIX: o romantismo, o indianismo e, em algum sentido, ainda que pese o dissabor, o escravismo - em concomitância e contradição com o também brasileiro liberalismo.
No XX, tivemos propostas diferentes da do Brasil-Império sendo colocadas aos olhos: após o advento de uma República que na visão de muitos já fora a vitória inconteste do americanismo e do estrangeirismo de uma maneira geral entre nós, e seguindo o curso histórico de decadência do liberalismo e do sistema agro-exportador, surgem as idéias nacionalistas, como forma de leitura de um Brasil verdadeiro, total, em resumo, brasileiro. Aqui, leia-se autárquico, autônomo, absolutamente independente.
Advêm o catolicismo-patriótico, o integralismo, o populismo varguista.
Sobre a questão da Identidade Nacional na produção de um novo ethos brasileiro após a Revolução de 30 e em suas similitudes com o peronismo argentino, é que faremos nossas colocações aqui, em abordagem sumária, tendo como fonte principal o texto
Identidade Nacional e Produção de Sentimentos, de Maria Helena Capelato in MULTIDÕES EM CENA. PROPAGANDA POLÍTICA NO VARGUISMO E NO PERONISMO, Campinas, SP, Ed. Papirus, 1998. (...)
POPULAR = NACIONAL,
EQUAÇÃO VERDADEIRA?
Uma das mais básicas afirmações do varguismo e do peronismo e que constitui preceito do populismo é a de que POPULAR = NACIONAL. Se assim é, o que é o POVO e o que é a NAÇÃO?
Nos atemos em grande parte à consideração de que, tanto para Vargas quanto para Perón, seus movimentos eram revoluções nacionais (Capelato, 1998). De fato, para ambos, o nacional é o popular. A grande questão é: quem não é popular, então não é nacional. Se há povo e anti-povo, então muitos "nacionais" serão "anti-nacionais", como no caso de inimigos do regime?
É-nos nítido uma mudança de
ethos com a ascensão dos populismos, bem como dos demais nacionalismos world-wide, na associação entre Povo e Nação de maneira antes nunca tão intrincada.
Isto é, se antes, na Europa, por exemplo, a Nação era o Estado, o Estado era o Rei & o Rei era a Pátria, tudo isto se confundindo bastante, como entender agora que a Nação seja apenas o Povo? Ao acaso pode-se esquecer que na cosmovisão aristocrática o Povo é apenas o conjunto dos homens comuns?
Assim, com as novas ordens e o novo poder nas mãos dos nacionalistas, a quem se deve atribuir o adjetivo - sempre honroso - de NACIONAL?
Se na mentalidade anterior - que, lembremos, tinha sob vários aspectos milhares de anos - Adolf Hitler, Benito Mussolini e Iossif Djougatchvilli eram comuns (i.e., não-nobres e não-principescos), como admitir agora que eles sejam o Führer, o Duce e o Stalin? Complicado, não?
Atestado está por inúmeros historiadores e sociólogos que se debruçaram sobre os totalitarismos europeus a dificuldade das autoridades nazistas lidarem com os príncipes e nobres alemães. Arno Mayer, Peter Gay e mesmo Norbert Elias já chegaram a apontar o profundo desprezo que os nazistas possuíam pela antiga realeza e nobreza germânica: quando não aceitavam a cooptação, os membros dessas classes eram presos, torturados e até mortos.
Ainda que consideremos insuficientes as análises até agora existentes a respeito, fica a impressão de que, no Brasil e na Argentina também deve-se buscar alguma coisa no imaginário monárquico, aqui entendido como o IMAGINÁRIO DO UM QUE GOVERNA, para enriquecer a discussão sobre varguismo e peronismo.
Também alguns de nossos autores já chegaram a iniciar apontamentos nesse sentido: José Murilo de Carvalho e Lilia Moritz Scwartz, por exemplo, ao identificarem a substituição do mito Dom Pedro II-Pai pelo mito Getúlio-Pai. A persistência da mística real, no nosso caso imperial, ainda que na República...
O que dizer da aura de prestígio da inesquecível Evita, a adorada Primeira-Dama da Argentina? Não raia a adoração das massas à aclamação dos povos de outrora? Não é a sua biografia uma história de arrependimento, penitência, glorificação, entronização e, finalmente, santificação? Até que ponto não é Eva Perón uma rainha para os argentinos, é fundamental que se questione.
Resumidamente, basta inferir que a idéia de Pais da Pátria fora sempre privativa dos Reis, até o XX.

As diferenças, contudo, entre varguismo e peronismo, por estes apontamentos que fazemos deverão ser sempre relevantemente salientadas, pois a História do Brasil é
sui generis no contexto latino-americano: a Monarquia Nacional brasileira (1822-1889) faz-nos destoar da República Argentina, desde a era das independências. Mesmo assim, deve-se perscrutar o que de persistência do imaginário monárquico-cristão (católico) há em nossos fenômenos políticos populistas.
Afinal, a busca pela unicidade é um dos pilares do Cristianismo: PARA QUE TODOS SEJAM UM. Universo = diverso no uno... (...) (1)
Esta nossa citação serve para elucidar que de fato há muito nos interessamos na compreensão do ethos relacionado à Realeza e as Nobrezas, no Brasil e no mundo.

De importante nela ressalte-se o que dissemos quanto aos ditadores totalitaristas do séc. XX.
A Rússia, por exemplo, chega ao séc. XX com o czarismo, sistema que em muito ainda tem de ser estudado; uma vez que foi lá que se produziu a Revolução de orientação marxista primeiramente na História Universal, pode-se perfeitamente entender o quanto é obscuro e complexo para o Ocidente o universo russo anterior a 1917.

Sabemos contudo que a Rússia, constituída de um sem-número de países e povos menores, com línguas, dialetos e histórias diversas, vivia sob o jugo de um monarca, o Czar e Autocrata de Todas as Rússias - seu título oficial -, o Chefe da Casa de Romanoff-Holstein-Gottorp. Fruto de trezentos anos de poder autocrático centralizado nas mãos dos Romanoff, o último imperador russo, Nikolai II, era inábil e infantilizado. Os erros estratégicos e atrocidades cometidos pelos seus ministros e generais, somados à sua tumultuada vida privada, fazem com que se dilapide em menos de vinte anos uma ordem relativamente coesa que havia herdado de seu pai, o Czar Aleksandar III.

As conseqüências mundialmente célebres dos resultados das Revoluções, a menchevique e a bolchevique, que depõem e prendem a Família Imperial russa em 1917, são o terrível fuzilamento do Czar, da Czarina Aleksandra, do Czarevitch Alexei, mais quatro filhas e dois funcionários régios - recentemente canonizados pela Igreja Ortodoxa -, além da incansável perseguição e do aprisionamento de mais vários grão-príncipes, príncipes e nobres russos no curso da Guerra Civil entre brancos e vermelhos.

Como pôde - e aqui é que gostaríamos de acrescentar, no futuro, com o auxílio da Antropologia Política e até da Psicanálise -, haver tal mudança de mentalidade?
Como foi possível a um Lenin ou a um Hitler, por exemplo, assinarem as sentenças de morte de seus próprios Imperadores, de seus próprios Soberanos?

Há nisso somente ambições políticas, inerências revolucionárias, regicídios comuns - a História conhece tantos outros - ou absoluta abstração de Deus, absoluta negação da transcendência, absoluta revolta com a Religião, absoluto ódio contra a Igreja (Católica, particularmente, mas tb. a Ortodoxa e qualquer outra idéia de Igreja)?

Muito estranho que até hoje as análises históricas se tenham centrado em discutir origens e conseqüências dos males totalitaristas e em quase nada tenham se voltado para a análise do mágico-religioso nestas perspectivas; talvez a majoritária presença de historiadores e cientistas sociais de postura materialista explique a questão. Pois passado o marxismo como escola filosófica preponderante nos quadros da academia, mesmo no culturalismo persiste o anti-monarquismo, o anti-catolicismo, o pró-republicanismo, etc.

Não deixa de forma alguma de ser interessante que historiadores de tradição e aprendizado marxista tenham percebido nuanças históricas absolutamente desprezadas - ao que tudo indica, propositalmente -, chegando mesmo a criar uma Nova História, não só na França, como na Inglaterra, nos Estados Unidos e em boa parte do mundo.

Desta forma é que se pode encarar o trabalho de Arno Mayer como ilustrativo in totum destas novas posturas historiográficas. Afinal, diz ele em A Força da Tradição:
A terceira e principal premissa deste livro é a de que a antiga ordem européia foi totalmente pré-industrial e pré-burguesa. Durante muito tempo, os historiadores enfocaram com demasiada insistência o avanço da ciência e da tecnologia, do capitalismo industrial e mundial, da burguesia e das classes médias, da sociedade civil liberal, da sociedade política democrática e do modernismo cultural tal. Estiveram muito mais preocupados com essas forças inovadoras e a formação da nova sociedade do que com as forças de inércia e resistência que retardaram o declinio da antiga ordem. Embora num certo nível os historiadores e cientistas sociais ocidentais tenham repudiado a idéia de progresso, num nível diferente continuaram a acreditar nela, ainda que em termos determinados. Essa crença tácita e duradoura no progresso vem acompanhada por uma intensa aversão à paralisia e à regressão históricas. Houve, assim, uma tendência marcante a negligenciar, subestimar e desvalorizar a resistência de velhas forças e idéias e o seu astucioso talento para assimilar, retardar, neutralizar e subjugar a modernização capitalista. incluindo até mesmo a industrialização. O resultado é uma visão parcial e distorcida do século XIX e do ínicio do século XX. Para obter uma perspectiva mais equilibrada, os historiadores terão de considerar não só o grande drama da transformação progressiva, mas também a implacável tragédia da permanência histórica, e investigar a interação dialética entre ambas. (2)
Na Alemanha, assimilar o que foi e o que ainda hoje representa o final da I Guerra e a deposição de cinco Dinastias reais (Prússia, Baviera, Saxônia, Wurtemberg e Hanôver), quatro Dinastias grã-ducais (Oldemburgo, Saxe-Weimar, Mecklemburgo-Schwerin e Mecklemburgo-Strelitz), seis Dinastias ducais (Anhalt, Hesse, Baden, Saxe-Coburgo-Gotha, Saxe-Meiningen e Saxe-Altemburgo) e seis Dinastias principescas (Lippe, Schaumburgo-Lippe, Hohenzollern-Sigmaringen, Reuss, Schwarzburgo e Waldeck-Pyrmont), cada uma delas alçada ao poder quase mil anos antes, é, no mínimo, melindroso.
Neste mundo, compreender a disputa pelo poder e a primazia dos povos teutônicos entre a Casa de Habsburgo e a Casa de Hohenzollern. Investigar o que representavam os parlamentos hereditários em cada uma dessas pequenas nações alemãs; quem eram os príncipes mediatizados e que poder eles detinham até 1918; qual papel cabia aos nobres (condes, barões e senhores), nesta constelação monárquica e aristocrática dos germanos do séc. XX.
O que a queda, o exílio e a perseguição dos Habsburg, a morte do Imperador Karl I - recentemente beatificado pela Igreja Católica - têm a dizer dos princípios do século passado?
No universo latino, estudar os significados da Unificação Italiana, conhecendo e investigando as Dinastias insulares reinantes até a década de 1860. Quem eram os Borbone das Duas Sicílias, os Asburgo da Toscana, os Borbone de Parma? Como viviam suas cortes e seus sistemas particulares de nobreza, exército; como viviam os povos sob suas administrações? O que eram os Estados Pontifícios; como o Papa os governava?
O que a Itália unificada sob a égide dos Savóia (monarcas do Piemonte e da Sardenha) representou para o imaginário cristão europeu de fins do XIX?
O que as monarquias espanhola e portuguesa representavam nesse universo? Como se deu a I República na Espanha e a volta da Monarquia? Quais as crises afetaram os reinados dos Bragança-Saxe-Coburgo em Portugal? Por que a República portuguesa precedeu a I Guerra Mundial, em 1910, adiantada pelo dramático regicídio de D. Carlos I e D. Luiz Filippe no Terreiro do Paço, em 1908?
Como viviam e se relacionavam esses Primos Reais que governavam a Europa, às vezes com mãos de ferro, às vezes com santidade cristã, até o advento do terrível fratricídio de 1914-18?
Já está mais do que na hora, ao nosso ver, de deixar com que esses príncipes e seus descendentes falem e se deixem melhor entender. Numa perspectiva de volta da monarquia nos Bálcãs, como vem acontecendo recentemente com a Bulgária e a Iugoslávia, sobretudo, façamos, também nós brasileiros - cuja Dinastia Imperial é européia - novas perguntas para antigas questões e tentemos dar a nossa contribuição à História.

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NOTAS
1) Cf. CERQUEIRA, Bruno da Silva de: Populismo e Identidade Nacional, Apontamentos sobre Varguismo e Peronismo, s/ed, Rio de Janeiro, 2001. (voltar)

2) Cf. MAYER, Arno J.: A Força da Tradição, a Persistência do Antigo Regime, p. 14, Cia das Letras, São Paulo, s/d. (voltar)

domingo, 10 de junho de 2001

A intelectualidade brasileira e a Identidade Nacional

A INTELECTUALIDADE BRASILEIRA E A IDENTIDADE NACIONAL
(Apontamentos)

• Trabalho de conclusão do curso de História do Brasil VII,
ministrado pela Exma. Sra. Profª. Dra. Graça Salgado na PUC-Rio •



TEXTOS
SEVCENKO, Nicolau: O exercício intelectual como atitude política: os escritores cidadãos
IN Literatura como missão, Ed. Brasiliense, São Paulo, 1995
ORTIZ, Renato: Memória coletiva e sincretismo científico: as teorias raciais do séc. XIX e Da raça à cultura: a mestiçagem e o nacional
IN Cultura Brasileira e Identidade Nacional, Ed. Brasiliense, São Paulo, s/d
OLIVEIRA, Lúcia Lippi: Desde quando somos uma nação? e Ufanismo: versão otimista da nação
IN A Questão Nacional na 1ª República, Ed. Brasiliense, São Paulo, s/d
CARVALHO, José Murilo de: O Rio de Janeiro e a República
IN Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, Ed. Cia. Das Letras, São Paulo, 1999

PROPOSTA
Relacionar os textos, ressaltando o que há de crítico no processo de nascimento das Ciências Sociais brasileiras e seu entroncamento com as formulações intelectualizadas de nossa Identidade Nacional.

Analisar criticamente as proposições sociais da Geração de 1870 e seus resultados concretos na História brasileira que se seguiu a esta década.

O que as correntes do pensamento científico da época - período de transição da Monarquia para a República; da escravidão para o trabalho livre - tinham a dizer da evolução histórica do Brasil?

Investigar, ainda que sumariamente, em que a questão racial se relaciona com o desenvolvimento de nosso pensamento social e as muitas derivações que dessa questão se expressaram no contexto político-econômico da época.

ANÁLISE

1. INTRODUÇÃO
Apresenta-se no Brasil do Oitocentos o complexo amálgama de um Estado colonial dependente, atrasado, datando trezentos anos de dominação portuguesa e mostrando-se semelhante, na perspectiva colonizatória, aos países vizinhos seus no continente sul-americano.

O tufão napoleônico faz transportar para o Estado do Brasil a Corte lusitana: mais de dez mil pessoas, incluindo príncipes, nobres, clérigos, burocratas estatais e funcionários régios aportam em Salvador, dirigindo-se depois ao Rio de Janeiro e aqui permanecendo, desde o início de 1808.

Uma rainha impossibilitada de reinar por problemas de saúde mental, naqueles fins do absolutismo monárquico português, vem acompanhada do filho único, o Príncipe-Regente D. João que ostenta, enquanto herdeiro da Coroa lusa o título de PRÍNCIPE DO BRASIL (1), trazendo consigo materialmente boa parte do riquíssimo acervo da Casa Real e historicamente algumas das realidades inerentes ao contexto metropolitano de então.

Viu-se o Brasil, mais especificamente o Rio de Janeiro, transformar-se apressadamente em sede concreta do já problemático Império ultramarino português. O período joanino engrandeceu-nos notavelmente; nada pode negá-lo. Principalmente o Rio foi forjado como a Nova Lisboa, a Lisboa tropical.

O Estado do Brasil foi em 1815 elevado pelo Congresso de Viena à categoria de Reino Unido a Portugal e Algarves, com a conseqüente aclamação de D. Maria I como Rainha do Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves.

Em 1816, falece a Rainha louca e ascende ao trono luso-americano D. João VI, nosso hábil ainda que pouco sagaz primeiro Rei de fato. A História de Portugal, desde a invasão do General Junot até 1820 é uma sucessão de investidas militares, guerras e pequenas revoluções que em muito arruínam a pátria-mãe. As Cortes portuguesas, repletas de parlamentares liberais exigem em 21 o retorno do Rei a Lisboa e a recolonização do Brasil.
D. João cede em parte, embarcando desgostoso para Portugal, deixando, entretanto, o Príncipe Real D. Pedro, seu filho e herdeiro, como Regente do Brasil.

Segue-se no Brasil a fomentação intelectual de parte da elite dirigente, balizada em amplo apoio popular, de tornarmo-nos independentes da antiga metrópole, de constituirmo-nos Império soberano.

Acaba por aderir o próprio Casal Príncipe Real a tais idéias, que de tônus liberais, já apontam algum republicanismo. Nasce em 1822 - mais em 12 de outubro que em 7 de setembro, diga-se de passagem - a Monarquia Nacional brasileira, em seu estado de facto, ainda que não de jure. O Império do Brasil, nascido de um processo histórico considerado ultra-revolucionário para os parâmetros reacionários e restauracionistas da época, marcada pelo espírito do Príncipe de Metternich e da Santa Aliança, constitui-se numa "faca de dois gumes" ao poderio e supremacia européia na História Universal.

Se de um lado tal Império frustrava ideais republicanos e amedrontava os hermanos latino-americanos do Brasil - Simon Bolívar será um eterno preocupado conosco -, de outro apontava a não adesão de um Príncipe Herdeiro europeu ao imaginário reabsolutizante das elites governantes centro-européias de então.

A filha do Imperador da Áustria havia sido juntamente com D. Pedro aclamada imperatriz deste Estado soberano sul-americano. As tratativas diplomáticas para que tal situação se enquadrasse nos moldes monárquicos tradicionais não tardaram e cedo surgiram acordos de reconhecimento de nossa Independência, por parte de Portugal, em que a Áustria formulava que se desse uma cessão de direitos no caso brasileiro, eliminando assim qualquer resquício revolucionário de nosso processo emancipacionista (2).

Foi assim que em 1825, o idoso e debilitado Rei D. João VI reconheceu a independência do Império do Brasil do Reino de Portugal, garantindo ao filho a condição de Imperador, enquanto herança sua. Isto é, o Imperador D. João cedeu ao Imperador D. Pedro os direitos dinásticos de governança do Brasil, por meio de um decreto real.

O I Reinado brasileiro é conturbado, bem o sabemos, interna e externamente. As relações com Inglaterra, Portugal, Áustria e Estados Unidos estarão sempre em primeiro plano quando se pensa em relações internacionais - e comércio exterior mais especificamente - neste período.

Internamente, a política caminhará com a promulgação da Constituição de 1824 e as conseqüentes crises no Executivo e no Legislativo entre o Imperador e a classe dirigente.

A vida pessoal de D. Pedro I, marcada pela intempestividade e o clamor de heroicidade, pela herança mental absolutista, além de uma sexualidade pouco aceita na época (don-juanismo exacerbado), resultará em graves cisões no governo. A mal-fadada Guerra da Cisplatina e a morte da Imperatriz D. Maria Leopoldina (1825) - que se constitui na primeira manifestação de luto nacional brasileiro, historicamente - e os sucessivos atritos com parlamentares, jornalistas e profissionais liberais de projeção, no plano interno; a morte do Rei seu pai (1826), sua abdicação de Portugal em sua filha D. Maria da Glória e a conseqüente crise real portuguesa pelo apossamento da Coroa pelo irmão D. Miguel, no plano externo, acarretaram a D. Pedro tristes conseqüências no desenrolar de seu reinado. Seu segundo casamento em 1829 com a Princesa bávara e napoleônica Amélie de Leuchtenberg - que lhe trouxe um maior regramento na vida íntima - e as tentativas de minimizar problemas do Brasil e de Portugal simultaneamente não chegaram a conduzi-lo a um melhor estado de sua imagem pública, o que o levou à abdicação do Brasil em seu filho único e herdeiro, D. Pedro de Alcantara, em 1831.

Segue-se na História política brasileira as Regências em nome do Imperador-menino D. Pedro II, período de conturbação social e estouro de revoluções regionais Brasil adentro. Em 1840, adianta-se a maioridade do Imperador, que é coroado e sagrado aos 15 anos incompletos e inicia efetivamente seu reinado.

O II Reinado é, sob todos os aspectos, a fonte mais importante na História do Brasil do início de apreciação que se deva fazer acerca da construção da Identidade Nacional brasileira. É ali que se fundamenta, ou ao menos se origina, quase toda a perspectivação da nacionalidade brasileira. Muito mal estudados e historicizados estão até o momento, em nossa opinião, os estreitos liames entre a Realeza e nossa Identidade Nacional.

O que faremos aqui nada mais é que apontar alguns indícios de percepção nossa, voltando-nos aos textos principais e de apoio dados, em vista de melhor perceber o desenvolvimento de nossa Identidade Nacional e o nascimento das modernas Ciências Sociais brasileiras e suas problemáticas adjacentes, contextualizando a transição do II Reinado para a República instalada pelo golpe de 15 de novembro de 1889.
2. PROPOSTAS IDEAIS NO II REINADO:
ROMANTISMO, INDIANISMO, NATIVISMO

Na espreita da formação de uma identidade nacional, inicia-se no reinado do Imperador D. Pedro II uma ideologia de Estado que visa edificar a brasilidade enaltecendo o elemento indígena, ou seja, aquilo que possuía o país antes da chegada do elemento branco.

O romantismo encontra assim terreno fértil no Brasil para produzir em mentes perspicazes uma História, uma Arte, uma Literatura nacionais. O Imperador, principal mecenas e um dos maiores articuladores deste edifício estatal, patrocina os jovens escritores, pintores e musicistas na construção desse Brasil brasileiro.

É o tempo de José de Alencar, Gonçalves Dias, Joaquim Manoel de Macedo, Castro Gomes, Vítor Meirelles, Araújo Porto-Alegre, etc. Também aí nascem o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e as inumeráveis imperiais instituições de cunho nacionalizador. Nas décadas de 40, 50 e 60 florescem os ideais românticos de um Brasil grande, forte, soberano. Não se problematiza a escravidão negra de maneira séria, não se lega-lhe o status de questão social.

Advém a década de 70 e alguns intelectuais começam a pensar o Brasil de outra forma. Identificam nosso atraso, numa tomada de consciência nitidamente marcada pelas correntes de pensamento cientificistas em voga na Europa de então: positivismo, evolucionismo, darwinismo social.
3. A GERAÇÃO DE INTELECTUAIS
BRASILEIROS QUE SE INICIA EM 1870

A erudita obra Literatura como missão, de Nicolau Sevcenko, primeiramente publicada em 1983, e que pode certamente já ser considerada um clássico nas Ciências Sociais, investiga as origens dos pensamentos que dominarão o cenário intelectual brasileiro posterior á década de 1870. O livro é, em nossa opinião, um verdadeiro manual aos interessados em História do pensamento social brasileiro; a riqueza vocabular aí impressiona.

Lembremo-nos que este ano é paradigmático no sentido de ver lançar, no interior de São Paulo, o Manifesto Republicano e a fundação do partido que advogará a implantação da forma republicana de governo em nossa pátria.

Os escritores de então, por Sevcenko chamados de mosqueteiros intelectuais, em alusão à própria auto-intitulação de um grupo de escritores cariocas, se acham investidos de um projeto modernizante do Brasil, que viesse a extinguir definitivamente entre nós o atraso, a herança colonial escravista, até a própria forma monárquica de governo, o clericalismo social dominante, etc.

Diz Sevcenko:

Arrojados num processo de transformação social de grandes proporções, do qual eles próprios eram fruto na maior parte das vezes, os intelectuais brasileiros voltaram-se para o fluxo cultural europeu como a verdadeira, única e definitiva tábua de salvação, capaz de selar de uma vez a sorte de um passado obscuro e vazio de possibilidades, e de abrir um mundo novo, liberal, democrático, progressista, abundante e de perspectivas ilimitadas, como ele se prometia. A palavra de ordem da "geração modernista de 1870" era condenar a sociedade "fossilizada" do Império e pregar as grandes reformas redentoras: "a abolição", "a república", "a democracia", O engajamento se torna a condição ética do homem de letras. Não por acaso, o principal núcleo de escritores cariocas se vangloriava fazendo-se conhecer por "mosqueteiros intelectuais".'
Os tópicos que esses intelectuais enfatizavam como as principais exigências da realidade brasileira eram: a atualização da sociedade com o modo de vida promanado da Europa, a modernização das estruturas da nação, com a sua devida integração na grande unidade internacional e a elevação do nível cultural e material da população. Os caminhos para se alcançar esses horizontes seriam a aceleração da atividade nacional, a liberalização das iniciativas - soltas ao sabor da ação corretiva da concorrência - e a democratização, entendida como a ampliação da participação política. Como se vê, uma lição bem acatada de liberalismo progressista. Para completar, a assimilação das doutrinas típicas do materialismo cientificista então em voga, que os lançou praticamente a todos no campo do anticlericalismo militante.
Toda essa elite europeizada esteve envolvida e foi diretamente responsável pelos fatos que mudaram o cenário político, econômico e social brasileiro: eram todos abolicionistas, todos liberais democratas e praticamente todos republicanos. Todos eles trazem como lastro de seus argumentos as novas idéias européias e se pretendem os seus difusores no Brasil. Tomemos apenas alguns exemplos dentre alguns dos mais notáveis desses homens. Inicialmente, Tobias Barreto, o sergipano em torno do qual iria se aglutinar a chamada Escola do Recife e cuja influência marcaria a obra de intelectuais de relevo como Sílvio Romero, Clóvis Bevilacqua, Arthur Orlando, Araripe Junior, Capistrano de Abreu e Graça Aranha, dentre muitos outros.
(
Literatura como missão, pp. 78, 79)
Após isso, ele tece uma breve história daquilo que considera a postura social de grupo que os intelectuais, nos diferentes cantos do orbe, assumirão como conseqüência da passagem de sociedades arcaicas para as modernas. Naquelas, os altos índices de analfabetismo, os ainda existentes laços vassálicos, impediam o avanço do capitalismo industrial. Fosse no Império Russo ou nos Reinos de Espanha e Portugal, houve contemporaneamente aos nossos mosqueteiros intelectuais plêiades de homens das letras, auto-investidos na função de dar luzes aos seus povos, leva-los à civilização.
A geração de 1870 começa a decepcionar-se mais profundamente com o correr dos anos 80 e 90 no Brasil. O atraso brasileiro, que a imensa maioria deles identificava com a escravidão e a própria Monarquia; o clericalismo permanente da sociedade e a falta de urbanização dos grandes centros, sobretudo Rio de Janeiro, se lhes parece repugnante.
Acompanham o desenrolar da crise econômica que se segue à Abolição da Escravatura (1888) e apesar de comemorarem uma grande vitória, persistem no engajamento político republicano. Mesmo constatando a obviedade de o povo jamais unir-se numa onda revolucionária para proclamar a República, continuam nossos mosqueteiros intelectuais a crer num surto de civismo nacional que provocasse a queda da Monarquia, e com ela se enterrasse o passado.

Tal não ocorre com a vitória da quartelada de 15 de novembro de 1889 e eles, apesar de num primeiro momento aderirem ao golpe, logo sentem o peso do militarismo: a intolerância do Mal. Deodoro e a fúria desmedida do Mal. Floriano. As sucessivas crises políticas e econômicas - mormente o Encilhamento em 1891, que empobreceu um sem-número de famílias antigas da aristocracia rural, enchendo de dividendos os novos-ricos da época, quase todos scrocks - e as suas conseqüências nefastas, de maneira especial nas censuras que impingiam aos jornais e nas perseguições, prisões e tolhimentos de alguns dentre esses mesmos mosqueteiros fizeram com que Lopes Trovão, um dos mais ativos próceres republicanos, já em 1890 declarasse: "essa não é a República dos meus sonhos".

Os mosqueteiros intelectuais transformam-se em paladinos malogrados...

É significativo que Sevcenko perceba o quanto se apresentou caótica e tirânica a República no Brasil aos olhos de nossos homens das letras. Diz ele:
(...) Não há, praticamente, partidos políticos no sentido clássico do conceito e esse foi um dos traços mais notáveis da Primeira República, porque não se mantinham interesses rigorosamente conflitantes nos meios políticos e entre os grupos que sobrenadavam à sociedade. Não que não houvesse oposição, os próprios intelectuais a representavam com a máxima substância, mas ela foi simplesmente varrida da vida pública e dos meios oficiais para a margem e a miséria, sob o estigma de anti-social e perniciosa.
A República, contraditoriamente, viera consagrar a vitória da irracionalidade e da incompetência, criando uma situação "onde tudo se deseja inócuo, tudo incaracterístico, tudo traçado, tudo prostituído, para fáceis mistificações, para predomínios idiotas e momentâneos, mas ferrenhos e desesperadores das verdadeiras almas".
Um dos temas pois, mais característicos e disseminados da critica intelectual do período passou a ser a recriminação da "inversão das posições nesse país". Por toda parte ele ressalta, explícito ou apenas velado, nos textos ou nos versos.
Os homens de talento sentiam-se unanimemente repelidos e postos de lado em favor de aventureiros, oportunistas e arrivistas sem escrúpulos. (...)
O momento era o da "imbecilidade triunfante", diria Euclides da Cunha. Teve ampla circulação o neologismo "mediocracia" com carga semântica que significava o "regime das mediocridades". Pessimismo e inconformismo se reuniam numa atitude crítica visceral: "Entre nós a incompetência é credo, doutrina, religião, poder". Foi esse mesmo impulso que arrastou os grupos intelectuais a prestarem apoio irrestrito a Rui Barbosa em suas campanhas políticas, no qual viam representado um membro da seleta inteligência nacional lutando contra o mesmo desprestígio e o mesmo chão estéril: "um indesejável viciado pelo crime de valer mais que os outros".
(
Idem, pp. 87,88)
Prosseguindo nas citações dos autores estarrecidos com a República da miséria artística e intelectual, Sevcenko inicia a abordagem do tema de crise da literatura e fragmentação da intelectualidade subseqüentes aos processos afirmatórios - auto-afirmatórios, diria-se em Psicanálise - da República de 89.

O Rio de Janeiro das primeiras décadas do séc. XX, espécie de sede do saber nacional enquanto Capital Federal, será procênio das mudanças que efetivamente ocorrerão como conseqüência do aceleramento da proximidade com a modernidade brasileira. A perda dos valores tradicionais, o arrivismo ilimitado, as novas faces do poder instituído, tudo será parte constituinte dessa nova fase da História do Brasil.

Mesmo com as perturbações de censura e a abundância do jornalismo meramente cronista, desenvolve-se um "novo jornalismo", voltado para a crítica política.

Este novo jornalismo, contudo, encarna de fato a ampliação dos meios de comunicação (jornais, revistas, periódicos), o que faz literalmente com que os intelectuais estejam empregados em serviços menores, teoricamente, i.e., necessitem de trabalho para o ganha-pão. A crítica, talvez por isso, nota Sevcenko, diminui o acirramento.

No Rio de Janeiro da Belle Époque, o chic e o smart não aceitam a presença irritante do antigo, do tradicional. Isto vira sinônimo de velho, ultrapassado... E se, apesar disso, dividiram-se sempre os nossos intelectuais em modernos deslumbrados e modernos críticos, pode-se perscrutar perfeitamente que ao segundo grupo não sobrou mais que a ação na História, pois coube ao primeiro o embasamento do savoir-faire pernicioso da República.

Dentro dos apontamentos que começamos a tecer aqui, fica nítido que a obra republicana em nada auxiliou o fomento cultural, artístico e principalmente intelectual na sociedade brasileira de princípios do século. Bem ao contrário, ela foi mesmo responsável pelo gradual afastamento e redirecionamento da atividade do pensador brasileiro que não fosse cooptado para os seus serviços. Afora que a crítica, em seu sentido elevado, jamais fora bem vista na República; militares ou civis, os novos "donos do poder" no Brasil eram bastante avessos ao exercício intelectual enquanto constância de demandas de cidadania.

Nesse ínterim, questiona-se se o fim da Monarquia, o não advento do III Reinado e da Imperatriz D. Isabel I, não foi uma grande interrupção no processo de consolidação da Identidade Nacional brasileira, com o riquíssimo apanágio da tradição, simbolicamente representado pela Dinastia, tendo sido descartado.
4. O PROBLEMA MESOLÓGICO E RACIOLÓGICO
O antropólogo Renato Ortiz, em sua obra Cultura Brasileira e Identidade Nacional, analisa a questão, enfocando na chamada geração de 1870 da intelligentsia brasileira, três nomes que considera síntese do pensamento da época: Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues. Ortiz os considera "precursores das Ciências Sociais brasileiras".

Particularmente acatando a sugestão de Evaldo Cabral de Mello, preferimos, contudo, considerar Joaquim Nabuco como o "pai da Sociologia brasileira" (3), uma vez que é dele toda a reflexão inicial sobre a escravidão negra e seu profundo enraizamento em nossa sociedade. Não valendo a pena discutir-se isso aqui e agora, voltemos à análise do texto de Ortiz. Ele diz:
Ao se referir ao declínio da hegemonia do romantismo de Gonçalves Dias e José de Alencar, que podemos situar em torno de 1870, Sílvio Romero arrola uma lista das teorias que teriam contribuído para a superação do pensamento romântico. Dentre elas, três tiveram um impacto real junto à intelligentsia brasileira: e de uma certa forma delinearam os limites no interior dos quais toda a produção teórica da época se constitui: o positivismo de Comte, o darwinismo social, o evolucionismo de Spencer. Elaboradas na Europa em meados do século XIX, essas teorias, distintas entre si, podem ser consideradas sob um aspecto único: o da evolução histórica dos povos. Na verdade, o evolucionismo se propunha a encontrar um nexo entre as diferentes sociedades humanas ao longo da história; aceitando como postulado que o "simples" (povos primitivos) evolui naturalmente para o mais "complexo" (sociedades ocidentais), procurava-se estabelecer as leis que presidiriam o progresso das civilizações. Do ponto de vista político, tem-se que o evolucionismo vai possibilitar à elite européia uma tomada de consciência de seu poderio que se consolida com a expansão mundial do capitalismo. Sem querer reduzi-lo a urna dimensão exclusiva, pode-se dizer que evolucionismo em parte legitima ideologicamente a posição hegemônica do mundo ocidental. A "superioridade" da civilização européia torna-se assim decorrente das leis naturais que orientariam a história dos povos. A "importação" de uma teoria dessa natureza não deixa de colocar problemas para os intelectuais brasileiros. Como pensar a realidade de uma nação emergente no interior desse quadro? Aceitar as teorias evolucionistas implicava analisar-se a evolução brasileira sob as luzes das interpretações de uma história natural da humanidade; o estágio civilizatório do país se encontrava assim de imediato definido como "inferior" em relação à etapa alcançada pelos países europeus. Torna-se necessário, por isso, explicar o "atraso" brasileiro e apontar para um futuro próximo, ou remoto, a possibilidade de o Brasil se constituir enquanto povo, isto é, como nação. O dilema dos intelectuais desta época é compreender a defasagem entre teoria e realidade, o que se consubstancia na construção de uma identidade nacional. A interpretação do Brasil passa necessariamente por esse caminho, daí a ênfase no estudo do "caráter nacional", o que em última instância se reportava à formação de um Estado nacional. O evolucionismo fornece à intelligentsia brasileira os conceitos para compreensão desta problemática; porém, na medida em que a realidade nacional se diferencia da européia, tem-se que ela adquire no Brasil novos contornos e peculiaridades. A especificidade nacional, isto é, o hiato entre teoria e sociedade, só pode ser compreendido quando combinado a outros conceitos que permitem considerar o porquê do "atraso" do país. Se o evolucionismo torna possível a compreensão mais geral das sociedades humanas, é necessário porém completá-lo com outros argumentos que possibilitem o entendimento da especificidade social. O pensamento brasileiro da época vai encontrar tais argumentos em duas noções particulares: o meio e a raça.
(
Cultura Brasileira e Identidade Nacional, pp. 14,15).
Depois prossegue Ortiz afirmando que meio e raça permearão toda a epistemologia da intelectualidade brasileira de fins do XIX e princípios do XX. Na identificação dos fatores constituintes da formação histórica de nossa sociedade, tais autores empreenderão construções negativistas de nossa realidade social, política e econômica, em vista de encaixá-la nos moldes cientificistas que se lhes serve de arcabouço.
Verá a tríade Euclides-Romero-Nina tudo o que falta na História do Brasil, segundo eles: ESTADO, NAÇÃO, POVO. Análises que se não de todo são comprometidas com pensamentos eurocêntricos da época, resultam numa péssima apreciação de nosso ethos e numa constatação da não existência de uma Identidade Nacional brasileira.

Seria hipócrita de nossa parte, ao sermos introduzidos na escrita de tais autores por Renato Ortiz, Nicolau Sevcenko e Lúcia Lippi Oliveira, não se indignar com as posturas anti-monárquicas e anti-católicas deles. Isto porque tais posturas, se bem que coerentes com a pensée cientifique, eram destoantes numa apreciação imparcial do legado que a Monarquia - tanto a lusitana (1500-1815), quanto a luso-brasileira (1815-1822), mas sobretudo a nacional (1822 em diante) - e a Igreja Católica deixaram ao Brasil.

Afirmar que realidades identitárias nacionais eram no Oitocentos ainda incompletas e lacunares seria bastante pertinente; fazer todavia vista grossa à identificação popular em torno da Realeza e desprezar a religiosidade popular representaram, no mínimo, leviandade e parcialidade nas obras de tais autores.

Aliás, aproveitando o ensejo, pode-se dizer que Ortiz já aponte para a parcialidade da tríade originária quando ressalta a importância da obra de Manuel Bonfim na apreciação do racismo como fator inerente ao pensamento do período. O vanguardismo de Bonfim é considerado relevante para uma melhor historicização das propostas intelectuais no Brasil de fins do Oitocentos. Segundo Ortiz, tal autor teria, com a publicação, em Paris da obra América Latina, Males de Origem, enveredado pela análise científico-social dos países latino-americanos fazendo a analogia com organismos biológicos. Segundo Ortiz, ele espelha-se em Comte, só que de uma forma que os demais pensadores brasileiros jamais o haviam feito. Existiria portanto no Continente males originais de parasitismo, frutos da colonização predatória de portugueses e espanhóis.

Em relação às raças, contudo, diria este autor que o processo de formação da sociedade no Brasil, peculiarmente, teria conseguido renovar a herança trágica do parasitismo colonial, mormente apresentadas como conservantismo de elite e a falta de observação. Vai além na análise da questão racial quando considera que os argumentos de inferioridade da raça negra e da indígena dariam sempre margem à defesa da exploração dos indivíduos dessas raças pela branca.

Ainda assim, Bonfim não diferiria da tríade quando optasse, em coerência ao cientificismo dominante, por considerar que nosso estágio civilizacional era o de atraso. Pensando em Francês, tal qualquer seu par, também esse autor repetirá os preceitos comtianos de civilização, ordem, progresso.

Ressalta ainda Ortiz que a obra de Bonfim é reveladora da angústia causada em nossa intelligentsia pela sempiterna importação de idéias; pela não produção de pensamento nacional. O interessante é que eles mesmos, sem saberem, importavam idéias e, o pior, tentavam adapta-las de forma equívoca, ao nosso país...

Neste ínterim, a própria idéia de República, é-nos grato afirmar, deveria ter sempre sido considerada mais estrangeira que nacional para o caso brasileiro. Voltaremos abaixo a tocar no assunto, quando falarmos do ufanismo.

Retornando à abordagem de Ortiz no que concerne à raça e ao meio, ele coloca que o Brasil seguirá, da década de 1870 até a de 1930, no campo intelectual considerando-se inferior às grandes potências estrangeiras, pela sua constituição histórica: a mestiçagem será, durante todo esse período, vista negativamente por nossos pensadores. Somente com Gilberto Freyre, nos anos 30, haverá positivação da mestiçagem e valorização do elemento negro na sociedade brasileira.

É interessantíssima a perspectiva de Ortiz quanto ao fato de que, mesmo engrandecendo bastante as Ciências Sociais com suas teorias de democracia racial, Freyre, em seu profundo cabedal de conhecimento, tenha servido à manutenção de certa visão elitista da história brasileira, o que resulta em continuidade com análises anteriores da Identidade Nacional brasileira. Diz ele:
Gilberto Freyre representa continuidade, permanência de uma tradição, e não é por acaso que ele vai produzir seus escritos fora desta instituição "moderna" que é a universidade, trabalhando numa organização que segue os moldes dos antigos Institutos Históricos e Geográficos. Não há ruptura entre Sílvio Romero e Gilberto Freyre, mas reinterpretação da mesma problemática proposta pelos intelectuais do final do século. Arthur Ramos dizia que para se ler Nina Rodrigues bastava trocar o conceito de raça pelo de cultura. A afirmação pude talvez parecer simplista mas creio que encerra uma boa dose de veracidade. Gilberto Freyre reedita a temática racial, para constituí-la, como se fazia no passado, em objeto privilegiado de estudo, em chave para a compreensão do Brasil. Porém, ele não vai mais considerá-la em termos raciais, como faziam Euclides da Cunha ou Nina Rodrigues; na época em que escreve, as teorias antropológicas que desfrutam do estatuto científico são outras, por isso ele se volta para o culturalismo de Boas. A passagem do conceito de raça para o de cultura elimina uma série de dificuldades colocadas anteriormente a respeito da herança atávica do mestiço. (...) Gilberto Freyre transforma a negatividade do mestiço em positividade, o que permite completar definitivamente os contornos de uma identidade que há muito vinha sendo desenhada. Só que as condições sociais eram agora diferentes, a sociedade brasileira já não mais se encontrava num período de transição, os rumos do desenvolvimento eram claros e até um novo Estado procurava orientar essas mudanças. O mito das três raças torna-se então plausível e pode se atualizar como ritual. A ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada nas ambiguidades das teorias racistas, ao ser reelaborada pode difundir-se socialmente e se tornar senso comum, ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou nos grandes eventos como o carnaval e o futebol. O que era mestiço torna-se nacional.
Eu havia afirmado anteriormente que a obra de Gilberto Freyre atendia a uma "demanda social" determinada. (...)
(..) O que me interessa discutir não é o trabalho de Gilberto Freyre como um todo, que é certamente multifacetado - por exemplo, sua aproximação antropológica da história, sua tentativa de analisar historicamente a sexualidade, etc. E o tema da cultura brasileira, da mestiçagem, que é relevante para a discussão. Neste sentido cabe entendermos como a continuidade do pensamento tradicional se inscreve na descontinuidade dos anos 30. Existe hoje um certo tabu em torno de Gilberto Freyre que dificulta a apreciação de seus escritos. Freqüentemente a argumentação se encerra num circulo vicioso. Ele é um autor genial porque escreveu
Casa Grande & Senzala, e vice-versa: trata-se de um grande livro porque foi escrito por Gilberto Freyre. Colocar a questão da continuidade do passado no momento de reorganização do Estado brasileiro é, na verdade, procurar fora da obra as razões do sucesso do livro. Muito embora existam contradições internas entre a estrutura da obra o Estado centralizador (abordaremos este tema no capítulo sobre Estado autoritário e Cultura), o livro possui uma qualidade fundamental, ele une a todos: casa-grande e senzala, sobrados e mucambos. Por isso ele é saudado por todas as correntes políticas, da direita à esquerda. O livro possibilita a afirmação inequívoca de um povo que se debatia ainda com as ambiguidades de sua própria definição. Ele se transforma em unicidade nacional. Ao retrabalhar a problemática da cultura brasileira, Gilberto Freyre oferece ao brasileiro uma carteira de identidade. A ambigüidade da identidade do Ser nacional forjada pelos intelectuais do século XIX não podia resistir mais tempo. Ela havia se tornado incompatível com o processo de desenvolvimento econômico e social do país. Basta lembrarmos que nos anos 30 procura-se transformar radical-mente o conceito de homem brasileiro. Qualidades como "preguiça", 'indolência", consideradas como inerentes à raça mestiça, são substituidas por uma ideologia do trabalho. Os cientistas políticos mostram, por exemplo, como esta ideologia se constituiu na pedra de toque do Estado Novo. O mesmo processo pode ser identificado na ação cultural do governo de Vargas, por exemplo na ação que se estabelece em direção à música popular. E justamente nesse período que a música da malandragem é combatida em nome de uma ideologia que propõe erigir o trabalho como valor fundamental da sociedade brasileira. O que se assiste neste momento é na verdade uma transformação cultural profunda, pois se busca adequar as mentalidades às novas exigências de um Brasil "moderno". Ao mulato de Aluísio de Azevedo se contrapõe a positividade do mestiço, que diferentes setores sociais procuram orientar para uma ação racional mais compatível com a organização social como um todo. Não tenho dúvidas de que esta ideologia do trabalho se encontra ausente do texto de Gilberto Freyre. O que quero mostrar é que a operação Casa Grande & Senzala possibilita enfrentar a questão nacional em novos termos. Dai eu ter afirmado que o sucesso da obra se encontra também fora dela. Ao permitir ao brasileiro se pensar positivamente a si próprio, tem-se que as oposições entre um pensador tradicional e um Estado novo não são imediatamente reconhecidas corno tal, e são harmonizadas na unicidade da identidade nacional.
(
Idem, pp. 40,41 e 42).

Enfim, Ortiz teoriza que servindo ou não de continuidade na percepção do problema racial brasileiro enquanto parte importante da Identidade Nacional, o mito democrático-racial contém uma imprescindível proposta harmonizadora da sociedade, o que deve ser constatado em sua análise como valor positivo:
O mito das três raças, ao se difundir na sociedade, permite aos indivíduos, das diferentes classes sociais e dos diversos grupos de cor, interpretar, dentro do padrão proposto, as relações raciais que eles próprios vivenciam. Isto coloca um problema interessante para os movimentos negros. Na medida em que a sociedade se apropria das manifestações de cor e as integra no discurso unívoco do nacional, tem-se que elas perdem sua especificidade. Tem-se insistido muito sobre a dificuldade de se definir o que é o negro no Brasil. O impasse não é a meu ver simplesmente teórico, ele reflete as ambigüidades da própria sociedade brasileira. A construção de uma identidade nacional mestiça deixa ainda mais difícil o discernimento entre as fronteiras de cor. Ao se promover o samba ao titulo de nacional, o que efetivamente ele é hoje, esvazia-se sua especificidade de origem, que era ser uma música negra. Quando os movimentos negros recuperam o soul para afirmar a sua negritude o que se está fazendo é uma importação de matéria sim bólica que é ressignificada no contexto brasileiro. E bem verdade que o soul não supera as contradiçôes de classe ou entre países centrais e periféricos, mas eu diria que de uma certa forma ele "serve" melhor para exprimir a angústia e a opressão racial do que o samba, que se tornou nacional. O problema com que os movimentos negros se deparam é de como retomar as diversas manifestações culturais de cor, que já vêm muitas vezes marcadas com o signo da brasilidade. Uma vez que os próprios negros também se definem como brasileiros, tem-se que o processo de ressignificação cultural fica problemático. O mito das três raças é neste sentido exemplar, ele não somente encobre os conflitos raciais como possibilita a todos de se reconhecerem como nacionais.
(
Ibidem, pp. 43 e 44).

5. A REPÚBLICA E A IDENTIDADE NACIONAL

As contribuições que o historiador e cientista político José Murilo de Carvalho têm fornecido à Literatura brasileira com as pesquisas em torno da questão da República são de fato de tal monta que se tornará difícil ao leitor ou ao profissional de História das próximas gerações não se referir a elas num estudo crítico da transição da Monarquia para a República em fins do XIX.

Suas propostas de análise concentram-se em ver que a nossa República é marcada pelo pecado original da impopularidade, além de ser - ou por isso mesmo - inconclusa e inóspita.

Tanto em Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi (1987), quanto em Formação das Almas: o Imaginário da República no Brasil (1991), o autor trabalha com as idéias de que a República apresentou-se de tal forma artificial em sua chegada que se vê em dificuldades até hoje para afirmar-se como forma de governo popular e autenticamente partícipe da Identidade Nacional.

Na primeira obra, que visava elucidar melhor a obscuridade do golpe de 15 de Novembro e suas conseqüências mais imediatas no cotidiano da Cidade do Rio de Janeiro, Carvalho percebe que as autoridades republicanas programaticamente esvaziaram a Cidade - que sintetiza o País - das perspectivações de cidadania e ampliação de direitos civis e políticos. Diz ele:
(...) A cidade, a vida e os valores urbanos tenderiam a favorecer a prática republicana, que, por sua vez, se caracterizaria pela ampliação da cidadania. A República, mesmo no Brasil, apresentou-se como o regime da liberdade e da igualdade, como o regime do governo popular. A cidade fora o berço da cidadania moderna e, no Brasil, o Rio de Janeiro, maior centro urbano, apresentava as melhores condições de fornecer o caldo de cultura das liberdades civis, bases necessárias para o crescimento da participação política.
Encontramos realidade diferente. Nossa República, passado o momento inicial de esperança de expansão democrática, consolidou-se sobre um mínimo de participação eleitoral, sobre a exclusão do movimento popular no governo. Consolidou-se sobre a vitória da ideologia liberal pré-democrática, darwinista, reforçadora do poder oligárquico. As propostas alternativas de organização do poder, a do republicanismo radical, a do socialismo e mesmo a do positivismo, derrotadas, foram postas de lado. A cidade do Rio de Janeiro, por sua vez, não apresentava as características de cidade burguesa onde se desenvolveu a democracia moderna. O peso das tradições escravista e colonial obstruía o desenvolvimento das liberdades civis, ao mesmo tempo em que viciava as relações dos citadinos com o governo. Era uma cidade de comerciantes, burocratas e de vasto proletariado, socialmente hierarquizada, pouco tocada seja pelos aspectos libertários do liberalismo, seja pela disciplina do trabalho industrial. Uma cidade em que desmoronava a ordem antiga sem que se implantasse a nova ordem burguesa, o que equivale a outra maneira de afirmar a inexistência das condições para a cidadania política. (...)

Na República que não era, a cidade não tinha cidadãos. Para a grande maioria dos fluminenses, o poder permanecia fora do alcance, do controle e mesmo da compreensão,. Os acontecimentos políticos eram representações em que o povo comum aparecia como espectador ou, no máximo, como figurante. Ele se relacionava com o governo seja pela indiferença aos mecanismos oficiais de participação, seja pelo pragmatismo na busca de empregos e favores, seja, enfim, pela reação violenta quando se julgava atingidos em direitos e valores por ele considerados extravasantes da competência do poder. Em qualquer desses casos, uma visão entre cínica e irônica do poder, a ausência de qualquer sentimento de lealdade, o outro lado da moeda da inexistência de direitos., a lealdade era possível em relação ao paternalismo monárquico, mais de acordo com os valores da incorporação, não em relação ao liberalismo republicano.

Impedida de ser república, a cidade mantinha suas repúblicas, seus módulos de participação social, nos bairros, nas associações, nas irmandades, nos grupos étnicos, nas igrejas, nas festas religiosas e profanas e mesmo nos cortiços e nas maltas de capoeiras. Estruturas comunitárias não se encaixavam no modelo contratual do liberalismo dominante na política. Ironicamente, foi da evolução destas repúblicas, algumas inicialmente discriminadas, se não perseguidas, que se foi construindo a identidade coletiva da cidade. Foi nelas que se aproximaram povo e classe média, foi nelas que se desenhou o rosto real da cidade, longe das preocupações com a imagem que se devia apresentar à Europa. Foi o futebol, o samba e o carnaval que deram ao Rio de Janeiro uma comunidade de sentimentos, por cima e além das grandes diferenças sociais que sobreviveram e ainda sobrevivem. Negros livres, ex-escravos, imigrantes, proletários e classe média encontraram aos poucos um terreno comum de auto-reconhecimento que não lhes era propiciado pela política. (...)

Mas, ainda hoje, tempo de Nova República, livre da tarefa de representar o país e tendo conquistado o direito de eleger seus governantes, a cidade não consegue transformar sua capacidade de participação comunitária em capacidade de participação cívica. A atitude popular perante o poder ainda oscila entre a indiferença, o pragmatismo fisiológico e a reação violenta. O conluio da ordem com a desordem, da lei com a transgressão, outrora tipificado no uso de capoeiras nas eleições, continua em plena vigência através do acordo tácito entre autoridades e banqueiros do jogo do bicho. A Cidade, a República e a Cidadania continuam dissociadas, quando muito perversamente entrelaçadas. O esforço de associá-las segundo o modelo ocidental tem-se revelado tarefa de Sísifo. Já é tempo talvez de se fazer a pergunta se o caminho para a cidadania não deve ser outro. Se a República não republicanizou a cidade, cabe perguntar se não seria o momento de a cidade redefinir a República segundo o modelo participativo que lhe é próprio, gerando um novo cidadão mais próximo do citadino.
(4)
Nesse sentido, é interessante aludir aqui às obras de autores da época que opuseram-se ferrenhamente à implantação do novo regime e que, em suas teorizações, já anteviam os males que daquela forma de governo ilegitimamente alçada ao Estado Nacional, poderiam permear a realidade social e política dali resultante.

Referimo-nos evidentemente aos ufanistas. Lúcia Lippi Oliveira, em seu A Questão Nacional na 1ª República, analisa a complexidade das datações históricas de nossa percepção enquanto NAÇÃO.

Em Desde quando somos uma nação? (3º cap.), a autora defende que há uma infinidade de posturas intelectuais divergentes na datação do princípio de sentimentos nacionais na Literatura brasileira. Ela particularmente opta por ver na Geração de 1870 os mais coesos postuladores de uma nacionalidade, que remetesse de imediato às idéias de modernidade, progresso, civilização. Ora, em sendo o próprio atributo de NAÇÃO visto na História Moderna e Contemporânea como particular às noções de Estado Nacional, por herança dos séculos XVI, XVII e XVIII europeus, tem-se que somente os mosqueteiros intelectuais vieram a compor in concreto um pensamento nacional brasileiro.

No capítulo seguinte, a autora salienta uma vertente do pensamento ufanista brasileiro das décadas de 1890 e 1900: o ufanismo monarquista. Uma das conseqüências mais aparentes da ascensão republicana foi o engajamento político e literário dos intelectuais monarquistas na frente de batalha ao stablishment republicano. Diz ela:
No início da República o otimismo quanto às qualidades da terra brasileira, associado às críticas à vida política republicana era representado pelos civis monarquistas. Eles condenavam a presença e a atuação dos militares no novo governo. A face militarista do regime republicano recebia críticas ferrenhas de Eduardo Prado, de Afonso Celso e mesmo de figuras como Joaquim Nabuco, que entre outras coisas acusava a Constituição brasileira de 1891 de ser uma cópia da Constituição americana.
Eduardo Prado em Fastos da ditadura militar no Brasil (1902), reuniu artigos publicados entre dezembro de 1889 e junho de 1890 na Revista de Portugal, periódico dirigido por Eça de Queiroz. Sob o pseudônimo de Frederico S., Eduardo Prado denunciava as práticas da ditadura militar republicana que se opunham às teorias e práticas liberais vigentes no Império. Para o autor, o Império encarnava o liberalismo, enquanto a República significava a introdução do caudilhismo na política brasileira. Além disso, a República trouxera consigo a ameaça de dividir o Brasil em vários países, rompendo a unidade conseguida pelo Império.
Entre os civis opositores do governo militar de Floriano encontrava-se também Rui Barbosa, que fora ministro da Fazenda do primeiro governo republicano. Advogado de defesa dos insurretos da Revolta da Armada, Rui foi perseguido pelo governo de Floriano, acabando por partir para o exílio na Europa.
(
A Questão Nacional na 1ª República, p. 103).
A seguir, ela coloca que Eduardo Prado fará aparecer em 1893 o seu A ilusão americana, em que identificará amplamente a República no Brasil a um projeto de imitação e cópia, constituído numa verdadeira norte-americanização de nossa cultura nacional, consideravelmente destoante da do gigante do Norte.
O livro de Eduardo Prado A ilusão americana, escrito em 1893, trata do período histórico que se estende de 1823, ano em que foi elaborada a doutrina Monroe, até a época chamada de política do big-stick patrocinado pelo Secretário de Estado James Biaine, quando o expansionismo norte-americano inaugura sua presença armada na América Central. A primeira edição da obra foi confiscada pelo governo. Não foi o conteúdo antiamericano do livro o responsável por sua apreensão, mas sim o fato de ter sido lançado durante o estado de sítio decretado por Floriano devido à eclosão da Revolta da Armada e da Revolução Federalista. Esses movimentos, marcados pelo revanchismo monarquista, criavam um clima desfavorável para a circulação de idéias e obras comprometidas com a Monarquia.
A ilusão americana condena a forma republicana, apresentando-a como cópia do modelo político norte-americano. A crítica à República aparece já no prefácio, no qual Eduardo Prado se refere ao novo regime como uma "dolorosa provação que (...) tanto tem amargurado a pátria brasileira". Mais adiante, reafirma essa posição quando diz que ''o governo republicano do Brasil está tristemente predestinado a reagir sempre contra a civilização". (...)
Os países da América espanhola, ao adotar o modelo norte-americano, renegam suas tradições. ''O Brasil, mais feliz, instintivamente obedeceu à grande lei de que as nações devem reformar-se dentro de si mesmas, como todos os organismos vivos, com a própria substância''. Em 1889, com o advento da República, cometeu-se o mesmo erro dos países hispano-americanos: foi imposto um modelo que acarretou a perda imediata da liberdade.
(
Idem, p. 105).

Por fim, Lúcia Lippi ressalta que o choque de posicionamentos jornalísticos e literários no Brasil de 10 e 20 dá-se entre dois principais nacionalismos: o jacobino e o ufanista. O primeiro de cunho mais militar, republicano e pró-Estados Unidos; o segundo, mais civil, monarquista e pró-Inglaterra.

Ela conclui afirmando que heranças teóricas desses pensamentos perpassarão nosso pensamento nacional no pós-guerra.

6. CONCLUSÃO

Dentro do que foi proposto, cremos ter conseguido apontar vários modos de apreciação que, ainda inacabados e prescindindo de análise metodológica mais séria e acurada, ficam como indícios de trazer à luz da bibliografia existente acerca de Identidade Nacional brasileira teorias melhor esboçadas sobre o monarquismo e o republicanismo em nossa pátria; sobre a persistência de valores tradicionais monárquicos em nossa sociedade; sobre a existência de algum resquício de identificação nacional dos brasileiros - ainda que inconscientemente - com sua Realeza, etc.

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NOTAS
1) São parcos, em nossa opinião, estudos sócio-genealógicos que indiquem a importância histórica do fato de o Príncipe Herdeiro português ter sido, desde 1645, titulado Príncipe do Brasil. Em similitude com as Realezas espanhola, inglesa e francesa, onde os Herdeiros eram - e ainda são - respectivamente o Príncipe de Astúrias, o Príncipe de Gales e o Delfim de Viennois, o Rei D. João IV o Restaurador decretou que os primogênitos reais fossem chamados de PRÍNCIPES DO BRASIL, muito provavelmente numa alusão à crença de continuidade histórica da grandeza lusitana via Brasil. (voltar)
2) Vários autores aludem ao nosso reconhecimento da Independência por parte de Portugal como cessão de direitos. Interessante, no contexto aqui apontado, é notar a influência que nisso teve a diplomacia austríaca. Cf. RAMIREZ, Ezekiel Stanley (trad. Américo Jacobina Lacombe): As relações entre a Áustria e o Brasil, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1968. (voltar)

3) Cf. CABRAL DE MELLO, Evaldo: Prefácio IN Minha Formação, de Joaquim Nabuco, Topbooks, Rio de Janeiro, 1999. (voltar)

4) Cf. Conclusão IN Os Bestializados, o Rio de Janeiro e a República que não foi, Ed. Cia. das Letras, São Paulo, 1999 (3ª edição e 6ª reimpressão). (voltar)